quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O GÊNERO EMBLEMÁTICO

Antônio Jackson de Souza Brandão

RESUMO – Neste artigo apresentaremos o gênero emblemático, criação do italiano Andrea Alciati no século XVI (1531), que domina a sociedade europeia até o século XVIII, mas desaparece no século XIX. Mostraremos também a dificuldade e a possibilidade de ler hoje, no século XXI, textos, imagens e emblemas do século XVII sem se possuir todo o referencial daquele momento.

PALAVRAS-CHAVE – Emblema, Barroco, Horapolo, imagem, iconologia

ABSTRACT – In this article we will present the emblematic genre, creation of the Italian Andrea Alciati in 16th century (1531) that dominates the European society until the 18th, but disappears in 19th century. We will also show the difficulty and the possibility of reading today, in 21th century, texts, images and emblems of 17th century without having all the referential of that moment.

KEYWORDS – Emblem, Baroque, Horapolo, image, iconology

INTRODUÇÃO

Falar de emblema em uma sociedade como a nossa em que o capital atingiu seu apogeu não deveria resultar em grande dificuldade, afinal estamos cercados de emblemas por todos os lados, simplesmente demos a eles outros nomes: marca, logotipo, logomarca...
Só para exemplificar, algumas marcas possuem, sozinhas, valores astronômicos como as do Google (US$ 100 bi), da Microsoft (US$ 76,2 bi), ou da Coca Cola (US$ 67,6 bi). Isso só vem a corroborar que a linguagem publicitária leva o consumidor não só a convencer-se da importância de determinados produtos, como também tem o poder de transformá-los em verdadeiros mitos, como um novo είδωλου (ídolo) a que se deve prestar culto.



No entanto, a importância do poder imagético utilizado pela propaganda não é, seguramente, fruto de nossa sociedade, apesar de o campo de sua abrangência parecer-nos recente. Há vários exemplos retirados da Antiguidade para demonstrar isso, basta-nos citar alguns: Alexandre Magno, para se fazer presente em todo seu vasto Império, fez com que se espalhassem estátuas (imagens) suas por todo seu domínio: a corporificação de sua ausência, nem por isso elas eram menos respeitadas; tática semelhante fora utilizada por Otávio Augusto (fig. 1) para impor seu poder de forma branda, unificando o Império Romano sob ele, seu imperador; que eram as grandes pirâmides, senão a demonstração imagética do poder – logo, de propaganda –, que seus futuros moradores, os faraós, teriam tido em vida?
No entanto, poderíamos afirmar que o poder imagético exercido pelas pirâmides e pelos colossais palácios egípcios, durante séculos, não instigaram tanto o Ocidente, pelo menos nos séculos XVI e XVII, como sua forma de escrita, os hieróglifos. Estes fascinaram sobremaneira

os humanistas, como já havia acontecido com os gregos que, ao se depararem com tais ideogramas, os consideravam herméticos, inseridos num campo da especulação cosmogônica e da filosofia natural ou mesmo com significados psíquico-alegóricos, não os vendo como uma simples forma de linguagem que também poderia ser utilizada para e pelos sacerdotes. (BRANDÃO, 2003, p. 49)

O filósofo grego Plotino chegou a afirmar que os egípcios não precisavam utilizar de argumentos discursivos, pois haviam descoberto uma forma de sintetizar as ideias por meio das imagens. Seguindo uma linha semelhante, vários teóricos, filósofos e pesquisadores a partir do Cinquecento e do Barroco ignoraram o fato de os hieróglifos também possuírem valor fonético, preferindo acreditar (evidentemente, diante das informações de que dispunham) que os mesmos possuíssem somente valor simbólico, cuja significação imagética obscura não estaria aberta a todos, logo seria necessário ter acesso a uma chave sígnica para saber o que eles queriam transmitir. Dessa forma,

Para muitos teóricos do Humanismo, a tradição grega e a hebraico-cristã nos remete ao Egito, já que Platão, Pitágoras e Moisés aprenderam com ela; mesmo Jesus, segundo Pico della Mirandola, ocultara seu conhecimento em torno da verdade, como os egípcios e outros povos. Tal consideração estendeu-se a toda cultura e pensamento ocidentais, por isso a obra de Horapolo, Hieroglyphica, desfrutou de grande prestígio no período − tornando-se, portanto, obrigatória a todos que quisessem utilizar-se dos hieróglifos −, pois, cria-se, era o único testemunho herdado daquele momento que visava à análise e ao comentário de sua simbologia (...). (ibidem, p. 49)

Afinal o que podiam aqueles homens, com sede de conhecimento, enxergar na escritura egípcia, cuja civilização lhes maravilhava, senão algo a mais do que meros desenhos, mas verdades escondidas sob seu velame imagético? Por isso, uma das chaves sígnicas para se compreender um período artístico como o Seiscentismo é, justamente, compreender o deslumbramento propiciado por Horapolo, provável grego (ou egípcio) que, no século IV, teria decifrado os enigmas contidos nos hieróglifos, revelando seus mistérios.
Ao ser descoberto pelos humanistas italianos, a obra serviu de inspiração para a criação do gênero emblemático. No entanto, da mesma maneira que a Hieroglyphica foi o prenúncio desse gênero, a própria obra levou-o ao descrédito já no século XVIII, diante do crivo racionalista do Século das Luzes; pois, segundo seus teóricos, a mesma não acrescentava nada ao campo da filologia, mas ao do fantástico. Já não era mais possível, à realidade daquele século, aceitar os comentários e a manipulação do conteúdo semântico dos hieróglifos egípcios – como ocorrera com Horapolo e sua obra –, pois os mesmos seriam, a posteriori, desmistificados por Champollion.
Há um artigo em que Gonzáles de Zárate aborda essa mudança de maneira clara:

La mentalidad ilustrada del siglo XVIII comenzó a cuestionar estos importantes códigos de información para artistas e intelectuales, comprendió que el fundamento del Emblema era netamente fantástico por cuanto partía de premisas falsas apuntadas por Horapollo, figura enigmática que compuso la Hieroglyphica hacia el siglo IV, obra que llegaría a Florencia en el XV y que estimuló las mentes más preclaras del Humanismo dando origen a esta literatura que hemos llamado Emblemática. Tal y como nos cuenta Chastel y refrenda Wittkower, los eruditos del XVI entendieron que el sabio egipcio había conseguido descifrar la sabiduría de los pueblos del Nilo que de forma oculta había quedado reflejada en un lenguaje visual o escritura jeroglífica. Los estudios de Champollión derrumbaron tales premisas y pusieron de relieve que el Horapollo tan sólo sirvió para excitar la fantasía poética de sus seguidores (…). (GONZÁLES DE ZÁRATE, 1999, pp. 256-257)

Não obstante o fato de as explicações contidas na obra Hieroglyphica terem sido ou não falsas, essas tiveram participação significativa na constituição do gênero emblemático (Cf.: PRAZ, 1989, p. 24) e no repertório imagético do período, cujo início remonta aos Quinhentos e seu ápice nos Seiscentos.



Podemos exemplificar a obra de Horapolo a partir da figura 2, onde vemos a representação de um falcão que olha em direção do sol e que, segundo seu autor, representaria Deus, excelência, sangue, vitória para os egípcios:

Mediante el jeroglífico del halcón mirando hacia al sol, Horapolo nos propone este animal como imagen de la divinidad, la dignidad y la excelencia y de la victoria. (…)
La relación con la divinidad queda manifiesta por ser el único animal, a juicio del autor, que puede volar mirando al sol, y el astro, como es sabido y hemos dicho en otra parte, era para los egipcios y también para los platónicos, imagen de la divinidad.
(HORAPOLO, 1991, p. 83)

Apesar do modismo advindo com a obra de Horapolo e sua influência no incipiente gênero, pode-se dizer que a concepção de uma onda emblemática fosse anterior a ela, afinal já permeava a mentalidade iconográfica dos primeiros cristãos, ou mesmo a do homem medieval com seus bestiários, lapidários e alegorias.

ORIGENS

A palavra emblema vem do grego e pode significar a parte da lança onde se encravava o ferro; algo embutido; ou mosaico. E é, exatamente, isso que temos diante de nós: um amalgamento iconológico que, à semelhança do mosaico, não pode ser visto num relance como uma mensagem que se abre e é logo descartada – como as imagens de nossa contemporaneidade, as quais não passam de um embrulho que, ao ser rasgado, é posto fora e de que ninguém se lembrará –, senão a imagem desprender-se-ia de seu invólucro e se tornaria um borrão disforme, perdendo sua significação. Para isso, tem de ser lida e relida, degustada, apreciada, para assim – por meio do engenho – ser decodificada e dar prazer. Além disso, traz sempre embutida mais do que uma imagem cercada de palavras que tentam se explicar mutuamente: cada emblema propunha levar seu leitor a mudanças comportamentais devido a seus preceitos morais.
O gênero emblemático teve, como marco inicial, a publicação da obra Emblematum liber, em 1531, pelo humanista italiano Andrea Alciati que, ao praticar um exercício próprio do momento – tradução e imitação –, compôs uma antologia com 99 epigramas latinos, cuja inspiração fora o livro de Horapolo. Ao ser publicado, acrescentaram-se ilustrações para melhor explicar o conteúdo dos epigramas e sua repercussão fora enorme, como demonstraram não só suas várias reedições (mais de 150), como também as constantes imitações por outros autores. Vale salientar, no entanto, que, apesar da aparente novidade, uma literatura semelhante à emblemática já era muito popular na França, no final da Idade Média, quando motes (divisas) eram, frequentemente, explicados por alegorias.
A moda de se empregar imagens para explicar epigramas propaga-se, rapidamente, na Itália, e foi decisiva para o desenvolvimento do gênero emblemático − com suas diferentes modalidades: emblema, empresa e divisa. Convém, no entanto, ressaltar algumas características que diferenciam o emblema da empresa, devido às confusões que podem despertar. Enquanto em um mesmo emblema admitem-se várias imagens – figuras históricas ou fabulosas, materiais ou artificiosas, verdadeiras ou quiméricas – inclusive a representação do corpo humano; na empresa ou na divisa, tal excesso não é admitido, pois é composta por um número reduzido de imagens, além de não admitir a representação total do corpo humano, havendo só a possibilidade de se representarem membros isolados: pernas, braços, troncos, mãos, pés. A intencionalidade do emblema é de caráter geral, relaciona-se à vida humana como um todo, não vela o que quer dizer: o emblema é direto, claro, nunca encobre o que declara; a empresa possui um emprego particular, sutil, engenhoso, por isso mais é enigmática. Vê-se, a partir de suas diferenças, que cada uma dessas modalidades destinava-se a diferentes leitores, apesar de, só na aparência, possuírem uma mesma constituição iconológica.
Seu êxito consistia em um casamento perfeito para as aspirações de grupos intelectuais do período, já que, naquele momento, se buscava uma linguagem universal e, acreditava-se que, a melhor forma para isso seriam as imagens. Estas teriam um grande poder comunicativo por serem acessíveis a todos, trilhando o caminho dos hieróglifos egípcios . Dessa forma, e munidos com essa nova possibilidade de comunicação, transmitir-se-iam regras de conduta para todos os seres humanos.
Evidentemente, um fator primordial para o sucesso do gênero deveu-se ao aprimoramento da imprensa, que não só propiciou sua rápida difusão, como também estendeu o mote emblemático para outros âmbitos, além daqueles restritos a preceitos morais ou meramente didáticos. Os emblemas espalharam-se e adentraram a campos temáticos diversos – apesar de, muitas vezes confluentes – fossem referentes ao amor, à flora, à fauna, à mitologia ou à religião. E, apesar de extremamente imagético, o gênero tampouco se restringiu ao círculo católico, como demonstram os inúmeros livros de emblemas protestantes . Outro aspecto que vale salientar em relação a esses gênero é o fato de o mesmo não ter se restringido ao veículo livro, já que grandes obras pictóricas emblemáticas foram utilizadas em cortejos reais, em exéquias, em festas de cunho religioso ou popular, mas que, infelizmente, se perderam por não terem sido registradas.

ESTRUTURA E LEITURA DE EMBLEMAS

Poderíamos perguntar-nos como seria possível a compreensão de um gênero que surge no século XVI, tem seu apogeu no XVII (no período barroco), mas que, praticamente, desaparece no XVIII, e torna-se desconhecido no XIX – com o advento de uma nova ordem social e econômica. Para isso, deve-se buscar resgatar a primitiva relação imagem-palavra que aqueles homens possuíam: a imagem destinar-se-ia à leitura; o poema, à contemplação visual.
Aquele era o momento das metáforas ilustradas, cuja função didática e moralizante, visava a fornecer princípios e modelos comportamentais, além disso inúmeras alegorias não passavam de lugares-comuns, presentes em iconologias e, de forma maciça, na Bíblia; assim, fazia-se mister seu conhecimento, sem o qual seria impossível a inserção e mesmo a permanência nas fechadas sociedades aristocráticas dos séculos XVI e XVII.
Os emblemas possuíam uma estrutura tripartite constituída por:
a) uma imagem – esta deveria ser fixada na memória dos leitores e passar-lhes-ia preceitos morais: era seu corpo;
b) um mote, a inscriptio − normalmente uma sentença aguda escrita em latim: direcionava o leitor a uma determinada leitura da imagem;
c) um epigrama (ou texto explicativo) − buscava relacionar o corpo com o mote do emblema, clarificando a relação existente: era sua alma.




Sendo um meio multisígnico, um emblema busca em sua hermenêutica muito mais do que a interpretação de sua alma, já que retoma sua vocação ao alegórico, ao filosófico, à particularização de uma Weltanschauung, além de prévios conhecimentos/conceitos teológicos, retóricos, pedagógicos, históricos e estéticos (dentro de nossa acepção hodierna, evidente), sem os quais se torna quase impossível abarcar toda sua carga sígnica: deve-se ter em mente que muitos poetas e teóricos do século XVII eram polímatas – com seu conhecimento multifacetado, afinal ainda não havia a idéia de especialização.
Evidentemente que, além desses elementos dificultadores, há outros fatores que complicam a plena compreensão dessas imagens textuais por uma pessoa do século XXI, como o próprio anacronismo, além do idioma normalmente empregado em sua alma, o latim (apesar de também poder ser empregado a língua vernácula do autor, ou ainda vários idiomas concomitantes).

Para lermos um emblema com sua multissignificação, faz-se necessário lê-lo como a um mosaico, cujas partes auxiliam para a compreensão do todo: as palavras como pequenas pedras vão aclarando os conceitos presentes na imagem que, apesar de, muitas vezes, ser clara, é obscura. Corpo e alma se completam, à medida que vamos relacionando-os, e a imagem conceitual torna-se presente.
Ao lermos o emblema do padre jesuíta Hermann Hugo (1588-1629), nosso exemplo da figura 3, é possível vermos a imagem de uma pessoa dentro de um esqueleto e este parece estar descansando, ou inquirindo-nos acerca de algo; logo abaixo do corpo do emblema, vemos a seguinte inscriptio, em latim, que dirigirá nossa leitura: Infelix ego homo, quis me liberabit de corpore mortis huius?, retirada da Carta de São Paulo aos Romanos: “Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte?” (Rm 7, 24)
A partir daí, podemos dar início a nossa leitura logo-imagética. Primeiramente, podemos inferir que a pessoa dentro do esqueleto está clamando para sair de lá por algum motivo: talvez por medo ou pavor, por estar presa e não ter como sair, ou mesmo por estar dentro de um esqueleto, símbolo-representação da morte! Mas, quem a pôs lá dentro?



Ao lermos o capítulo em que o versículo está inserido, vemos São Paulo exortando a comunidade de Roma a compreender que a antiga Lei – a Lei de Moisés, cujos preceitos religiosos pertenciam ao povo hebreu – era justa, quando, por exemplo, o fez compreender (via consciência) o conceito de pecado e de suas implicações. No entanto, ao ter consciência do mesmo, não só não conseguiu abandoná-lo, como se torna escravo dele “porque o pecado aproveitou a ocasião do mandamento, me seduziu e, através dele, me matou”. (Rm 7, 11)
O apóstolo continua sua epístola, dizendo que aquilo que era para ser bom para ele – a consciência do mal, do pecado –, simplemente se transformou em morte, visto que seu resultado foi contrário. No entanto, ele frisa, tal fato não foi devido à Lei, mas ao pecado que reside nele mesmo:

Foi o pecado que fez isso. Pois o pecado, através do que é bom produziu em mim a morte, a fim de que o pecado por meio do mandamento aparecesse em toda a sua gravidade. (Rm 7, 13b)

Vê-se, à continuação, que São Paulo – diríamos num jogo conceptista – apresenta esse pecado interno como algo que vem do egoísmo humano e, portanto, deve ser extirpado dele, mas isso somente foi possível quando o λόγος (lógos) divino se encarna e, ao assumir a própria condição humana, arranca de seu interior o egoísmo por meio de sua morte e ressurreição. Essa seria a diferença entre os que acreditam na Lei e aqueles que acreditam em Jesus Cristo. São Paulo, portanto, em seu jogo dialético, mostra a seus destinatários quem é que pode libertá-los da morte interior – do egoísmo –, ou seja, um corpo estranho dentro de outro, mas que, no fundo, é o próprio íntimo da pessoa.
A alma do emblema vai levando-nos a tentar compreender por que a pessoa clama, já que está de mãos postas em sinal de prece e de clemência. Há várias citações retiradas do Livro dos Salmos como os capítulos 38, 102 e o 118, além do livro de Jó, que vão abordar esse assunto, sendo inclusive citadas ao longo do texto da alma do emblema.
O eu lírico do Salmo 38, por exemplo, clama a Javé que não lance sobre ele a fúria de sua justiça devido a seus pecados, já que além dos sofrimentos que pesam sobre ele externamente, há também aqueles que lhe pesam em sua cabeça. Provavelmente, demonstra estar com uma grave doença como a hanseníase – sinal externo de pecado para os hebreus, sujeito ao isolamento do meio comunitário –, por isso é perseguido e apontado pelos outros: ele torna-se, portanto, sua própria prisão, devendo abandonar tudo, é um impuro. Entretanto, apesar de declarar-se culpado (Sl 38, 19), afirma que não são justas as acusações de seus detratores (Sl 38, 20-21); suplicando por socorro, pede que Javé abrande seu sofrimento: “Vem socorrer-me depressa, meu Senhor, minha salvação!” (Sl 38, 23)
O livro de Jó vem completar a idéia do salmista, pois em seu sofrimento sente-se sufocado por dores, pede antes a morte do que a permanência de tal situação. Se ele pecou, por que Javé não lhe mostra, não lhe perdoa? Por que fazer tanta conta do que ele é e faz?

O que é o homem, para fazerdes tanto caso dele, para fixares tua atenção sobre ele, a ponto de examiná-lo a cada manhã e testá-lo a cada momento? Por que não paras de me espionar, deixando-me ao menos engolir saliva? (Jó 7, 17-19)

Ao lermos, rapidamente, alguns detalhes da imagem, poderemos verificar que aquilo que ela nos transmite lembra o que já fora dito na alma do emblema, já que os textos falam de morte e temos sua representação na figura do esqueleto. Mas, além dessa imagem lúgubre, vemos a de uma menina (ela está de vestido) que está inserida dentro do esqueleto, cujas costelas servem de grades para mantê-la presa. É possível verificar também que ela dirige seu olhar aos céus, suplicando para sair daquele corpo de morte – que sequer é um corpo – que a mantém prisioneira; está de mãos postas, segurando o esterno tétrico de sua prisão da mesma maneira como o prisioneiro segura nas grades da prisão que o mantém cativo... Chama-nos a atenção a posição adotada pelo esqueleto: sentado, pernas cruzadas, mão esquerda segurando a cabeça que está um pouco abaixada, a outra espalmada para frente; e tudo isso, em um ambiente inóspito.
Apesar de sua prisão, a menina não demonstra desespero como poderíamos supor num primeiro momento; pelo contrário, seu rosto demonstra-nos a serenidade de quem confia e crê em uma força maior do que ela.
Seus olhos, dirigindo-se ao céu, pertencem à representação alegórica da oração, segundo a Iconologia de Cesare Ripa (1555-1622) :

Se pinta con los ojos alzados hacia el Cielo, porque las cosas que se piden en la Oración deben relacionarse precisamente con la que es nuestra verdadera patria, y no con las cosas de la tierra, donde somos peregrinos. (RIPA, 1987, v. 2, p. 159)

Ou ainda:


(...) con los ojos vueltos hacia al Cielo mostrándose con ello el conocimiento de sí mismo que engendra la humildad, así como el conocimiento de cuanto a Dios se refiere, que engendra la confianza; enseñándonos con ello que en lo que respecta al pedir no debemos ser ni tan humildes que desesperemos, ni tan confiados que no nos asalten las dudas a causa de las faltas y pecados cometidos. (ibidem, p. 159)

Vemos que a menina – na verdade a representação da alma humana – não demonstra medo devido a sua confiança em Deus, pois sabe que Ele virá em seu socorro prontamente, afinal ele não para de nos espiar a todo momento, conforme havíamos lido em Jó. Além disso, São Paulo disse-nos que, ao sermos batizados, morreríamos em Cristo, mas como ele ressuscitou, ressuscitaríamos também com ele, dessa forma,

Se Cristo está em vocês, o corpo está morto por causa do pecado, e o Espírito é vida por causa da justiça. Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dos mortos habita em vocês, aquele que ressuscitou Cristo dos mortos dará a vida também para os corpos mortais de vocês, por meio do seu Espírito que habita vocês. (Rm 8, 10-11)

Aqui começamos a fechar o cerco para a compreensão do todo emblemático passado por Hermann Hugo: o esqueleto é, na verdade, o próprio corpo morto pelo pecado, mas resgatado por Deus devido ao Espírito que habita na alma – no caso a menina – daqueles que conseguiram dominar seus instintos egoístas:

Se vocês vivem segundo os instintos egoístas, vocês morrerão; mas se com a ajuda do Espírito fazem morrer as obras do corpo, vocês viverão. (Rm 8, 13)

Para isso se faz necessária a meditação, o buscar-se, o refletir profundamente sobre sua existência e abandonar o homem velho para se revestir do novo:

Vocês devem deixar de viver como viviam antes, como homem velho que se corrompe com paixões enganadoras. É preciso que vocês se renovem pela transformação espiritual da inteligência. (Ef 4, 22-23)

Depreende-se que o esqueleto não passa do homem velho que tem de morrer (ou já está morto se já foi tocado pela graça) para que o novo – a criança – possa tomar seu lugar. Isso explica a própria atitude do esqueleto, já que segurar a bochecha com a mão esquerda representa, para Ripa, meditação:

Estará reposando la mejilla encima de la mano del brazo izquierdo, plegándose este último sobre la rodilla del mismo lado, en actitud pensativa. (…)
La actitud en que aparece, sujetándose el rostro, significa la gravedad y profundidad de pensamientos en que ocupa su mente, ejercitándose precisamente en aquellas cosas necesarias e imprescindibles para actuar con la mayor justeza y perfección, evitando al azar y las acciones caprichosas.
(Ripa, 1987, pp. 63-64)


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos, portanto, encerrar este artigo, afirmando que Alciato não poderia ter feito uma melhor escolha para o nome de sua obra, bem como o de ter influenciado o nome do gênero que dela resultou, pois mais do que uma simples imagem associada à palavra, é a figura de um mosaico que fica. Diante deste não basta só a proximidade, mas a distância; no entanto, só a distância não nos dá as particularidades do trabalho artístico, nem aquilo que, comumente, se chama de verdade; por isso, deve manter o equilíbrio, a mescla das duas formas, para procurar sentir como o artista trabalhou, como resultou seu trabalho, e o que é a verdade acerca desse mesmo trabalho.
Além disso, foi por meio desse mosaico de informações, saberes e conhecimentos que a imagem quis transformar-se em uma linguagem universal; e, apesar de sua relativa brevidade, o gênero emblemático influenciou grandes nomes da literatura e da pintura, inclusive em nossos dias, como Salvador Dalí, cujas obras deixam transparecer a consulta a esses manuais.
Hoje, apesar de estarmos tão distantes temporalmente, podemos questionar o porquê de se conhecer ou rememorar esse gênero do passado. A resposta é simples: como o homem do século XVII, cercado por inúmeras imagens e propaganda por todos os lados, assim também estamos nós, no XXI. E, como ilustramos no início deste texto, os grandes emblemas que temos hoje são aqueles resultantes diretamente do emprego das mídias que temos a nosso dispor; de sua propaganda que nos leva, cada vez mais, a tornarmo-nos dependentes dela mesma, abocanhando-nos sem sequer sabermos o que foi.
E o homem do século XXI, tão senhor de si, o homem do futuro, sem conhecer a si mesmo, perdido que está diante do imagético presente hoje, também clama pelo religioso; para sentir isso, basta ver nas esquinas das periferias das grandes cidades brasileiras, em pequenas garagens, que o nome de Deus é gritado em preces e louvores em inúmeras seitas que crescem todos os dias...
Também nós estamos presos, por isso temos muito mais em comum com o homem barroco e seu sistema de imagens do que nós próprios podemos imaginar; mas, como eles, preferimos ainda acreditar em Horapolo, afinal ainda há (muitas) pessoas que acreditam em tudo aquilo que as mídias transmitem: as novidades (mesmo que sejam velhas) valem muito!


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRANDÃO, Antônio Jackson de S. A literatura barroca na Alemanha. Andreas Gryphius: representação, vanitas e guerra. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade de São Paulo, 2003.
___________ . Iconofotologia do Barroco alemão. Tese de doutorado apresentado à Universidade de São Paulo, 2008.
GONZÁLES DE ZÁRATE, Jesús María. “Lo emblemático, lo mitológico y lo onírico en la pintura de Goya: el pintor y la visión del Príncipe”. In Cuadernos de arte e Iconografía. Tomo VIII – 16, Madrid, 1999.
PRAZ, Mário. Imágenes del Barroco (estudios de emblemática). Madrid, Ed. Siruela, 1989.
RIPA, Cesare. Iconología (Prólogo de Adita Allo Manero). Tomo l. Madrid, Akal, s/d.
___________. Iconología. Tomo II. Madrid, Akal, 1987.