segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

A iconofotologia: entre o lógos poético, o eikon e a techné fotográfica

Prof. Dr. Antônio Jackson de Souza Brandão

Resumo: O presente artigo propõe uma nova abordagem da leitura de textos de períodos extemporâneos e, para isso, fez-se necessário criar novos termos que correspondessem a essa expectativa: a iconofotologia e poemas fotográficos. Para que um leitor contemporâneo possa ler e compreender textos retóricos dos séculos XVI, XVII e XVIII, teria de ter acesso a uma chave sígnica a que somente seus leitores tinham acesso: as iconologias. No entanto, esse referencial se perdeu, por isso o substituímos por um outro, a partir do acervo imagético-fotográfico de que dispomos hoje e que chamamos de iconofotológico. A partir dele, será possível lermos, sob o ponto de vista contemporâneo (não sob o ponto de vista seiscentista, por exemplo), os poemas que denominamos fotográficos.

Palavras-chave: Iconofotologia, poema fotográfico, poesia, fotografia, iconologia

Abstract: The present article intends to give a new approach to the reading of texts from the untimely periods and, for that, it was necessary to create new terms that corresponded to this expectation: the iconophotology and photographic poems. In order to enable a reader to read and understand rhetorical texts from 16th, 17th and 18th centuries, he would have to have access to a signical key to which only readers of that moment had access: the iconologies. However, such reference has been lost; therefore, we have to replace it by another one, from the imagetic-photographic collection we have, which is called iconophotological. With this premise, it will be possible to read, under the contemporary point of view (not under the baroque point of view), the so-called photographic poems.

Keywords: Iconophotology, photographic poem, poetry, photography, iconology,


Introdução

A relação entre a imagem pictórica e a poética já possui longa tradição. Ambas caminharam juntas durante séculos, apesar dos paragoni que buscavam ressaltar a predominância de uma sobre a outra. No entanto, o que se pretende com este artigo não é tratar dessa relação, mas tentar estabelecer uma outra entre a leitura de textos literários extemporâneos (dos séculos XVI, XVII e XVIII) – restritos à poesia descritiva – e a fotografia. Obviamente, essa relação não se dará por meio dos pressupostos retóricos daquele período, devido ao anacronismo, mas a partir da recepção imagética que fazemos hoje daquelas imagens, aparentemente, descritivas.
Diferentemente de séculos anteriores, fazemos hoje uso distinto das regras retóricas e de suas imposições. Isso não significa, contudo, que as figuras retóricas tenham sido abolidas, afinal constituem a essência do fazer poético (e literário):

(...) não há poesia sem figuras, conquanto se entenda ‘figuras’ num sentido suficientemente amplo: toda mensagem literária é necessariamente ritmada, rimada, assonante, graduada, cruzada, oposta, etc. Mas, evidentemente, há figuras sem poesia (...). (Dubois, 1974: 41)

A partir do Modernismo, a arte pictórica e a literária ampliaram seus horizontes por meio de uma verdadeira revolução e parte desse processo deveu-se ao advento da fotografia no século XIX. Sua repercussão verificou-se não só naquele momento como em todo o século XX, afetando, inclusive, nossa relação com o mundo imagético, seja no campo da artes pictóricas seja no da literatura. Houve também, no início do século passado, uma reaproximação entre palavra e pintura, como demonstraram alguns experimentos vanguardistas. Hoje, por sua vez, palavra e imagem (em sua grande maioria fotográfica) também são largamente empregadas na (e pela) linguagem publicitária.
No entanto, diante do domínio da imagerie que estamos presenciando, vêm-nos algumas questões que já se tornaram, inclusive, lugares-comuns: a imagem sempre vai superar o λόγος (lógos) na apreensão do mundo que nos cerca? Ou ainda: uma imagem vale por mil palavras?

A imagem prescinde do λόγος?

O λόγος tem o poder de representar-se e de representar aquilo que está a nossa volta e, mesmo diante do assédio proporcionado pelo turbilhão imagético-fotográfico, continua demonstrando sua hegemonia. Pode-se verificar isso quando, diante de uma fotografia – seja em revistas, jornais, outdoors – necessitamos, muitas vezes, da legenda para que, por meio desta, possamos explicar aquela e torná-la mais legível ou mesmo inteligível.
Por mais estranho que seja falar em busca por inteligibilidade, não se deve esquecer de que ainda há, por parte de muitas pessoas, a convicção de a imagem fotográfica representar uma cópia fiel da realidade, logo prescindiria de qualquer explicação, afinal, falaria por si mesma. No entanto, devido às inúmeras possibilidades auferidas pelos recentes softwares de edição de imagens, esse mito vem, pouco a pouco sendo desfeito: já se tem consciência de que a fotografia possa sofrer várias manipulações; e, acrescente-se a isso, sua propagação sem limites e a facilidade de sua obtenção.
Atualmente, muitas pessoas já têm o hábito de desconfiar do que veem: realmente é a fulana que está aqui? Aquela foto não é uma montagem? Esse desconfiar do fotográfico está se tornando constante (deve-se ter em mente que uma das funções da fotografia era, exatamente, o contrário, a comprovação), principalmente devido à infinita acessibilidade e dissiminação imagéticas proporcionadas pela internet, que demonstram, inclusive, a crescente idolatria (είδωλον + λατρεία – culto à imagem) de nossa sociedade.
Diante dessa desconfiança incipiente, surge a necessidade comprobatória da legenda que negará ou afirmará uma possível manipulação efetuada numa imagem, naquilo que ela possa significar, ou naquilo em que queiramos (ou não) acreditar. Isso é auferível quando se vê que, apesar da constatação proporcionada por uma fotografia jornalística – comprovadamente sem montagem –, muitos ainda insistem em dizer que ela sofreu manipulação, preferindo acreditar naquilo que querem, ou seja, em sua verdade, afinal:

cada fotografia é um fragmento, o seu peso moral e emocional depende do conjunto em que se insere. Uma fotografia muda em função do contexto em que é vista: por isso, as fotografias de Smith sobre Minamata parecerão diferentes numa prova de contato, numa galeria, numa demonstração política, num arquivo policial, numa revista de fotografia, numa revista de atualidades, num livro, numa parede da sala de estar. Cada uma destas situações sugere um uso diferente para as fotografias, mas nenhuma pode fixar seu significado. (Sontag, 1986: 99)

Devem-se estabelecer os limites sígnicos da fotografia e, para que isso seja possível, faz-se necessário o uso do λόγος: ele que certificará aquilo em que temos de acreditar; se houve ou não manipulação na fotografia; qual sua intenção; qual seu significado, pois

Ocorre em relação a cada fotografia o que Wittgenstein afirmava sobre as palavras: o significado é o uso. E é por isso mesmo que a presença e a proliferação de todas as fotografias contribui para a erosão da própria noção de significado, para estilhaçar a verdade em verdades relativas, o que hoje é aceite sem reservas pela consciência liberal moderna. (ibidem: 99)

Isso faz com que acabemos sendo impelidos ou a acreditar em tudo o que temos diante de nossos olhos, ou a não acreditar em nada e ver tudo como mera ilusão, como se estivéssemos num deserto, cercados de miragens por todos os lados, até o momento de descobrirmos que elas não o eram totalmente: nós é que não conseguíamos tocar o que queríamos, as imagens-objeto fugiam a nosso toque. Isso se complica ainda mais, no entanto, não devido à imagem em si, mas às palavras que a explicam, já que quando estas se juntam àqueles somos obrigados a acreditar.
Flusser comprova isso ao dizer que, já no século XIX, se verificava algo semelhante, quando os próprios textos haviam se tornado, naquele momento, inimagináveis diante do alto grau de complexidade alcançado pela textolatría: o deserto deixara de ser imagético e passara a ser lógico:

En el sentido más estricto, este fue el fin de la historia, la cual, en este sentido estricto, es la transcodificación progresiva de las imágenes en conceptos, la explicación progresiva de las imágenes, el progresivo desencantamiento, la conceptualización progresiva. Donde los textos ya no son imaginables, no hay nada más qué explicar, y la historia cesa.
Precisamente en esta etapa crítica, en el siglo XIX, se inventaron las imágenes técnicas a fin de hacer los textos nuevamente imaginables, para colmarlos de magia y, así, superar la crisis de la historia. (Flusser, 1990: p 14-15)

Paradigmas podem (e devem) ser quebrados e aquilo que o senso comum afirma, pode ser contestado. Isso serve, sem dúvida, à afirmação de que nossa sociedade prefere, incontestavelmente, as imagens às palavras. No entanto, a imagem nem sempre pode prescindir da palavra e de sua logicidade para se clarificar; isso se faz necessário para que se possa depreender daquela muito mais do que pigmentação, incidência da luz, ou sua referencialidade, já que:

O mundo das imagens não é, necessariamente, imagem de mundo, mas cópias mal-ajambradas de visões de mundo estereotipadas e tacanhas. Daí a facilidade com que a lógica do texto se impõe, inclusive nos forçando a olhar o mundo apresentado por imagens com desconfiança maior do que o mundo apresentado por textos. (Bonfiglioli, 2008: 7)

Logicamente, tal afirmação quebra, novamente, o lugar-comum que nos expõe a possibilidade de as imagens prescindirem do λόγος. Não se deve esquecer, porém, de que λόγος e είκών (eikón) – palavra e imagem – vindos de uma fonte comum, a natureza – via μίμησις (mimese) – acabaram se completando e imiscuindo-se durante a trajetória humana – como no gênero emblemático , ou mesmo em alguns movimentos vanguardistas do século XX. Isso também pressupõe que a imagem deva ser lida e sua tessitura desmontada, à semelhança do texto escrito, a fim de que seja possível extrair o máximo de informação interpretativa do mesmo , quando se depreenderá todos seus elementos constitutivos – como na leitura iconológica de Panofsky, por exemplo.
Para que isso seja possível, o papel do leitor é importante, pois à semelhança do texto logocêntrico, no imagético, também é o leitor que tem de se relacionar com a obra e, a partir de sua Weltanschauung ter a possibilidade, ou não, de depreender sua significação. Dessa forma, não é a aparente objetividade da imagem que atuará naquele que lê, facilitando ou não a leitura, mas a capacidade do leitor em fazê-la.
Assim, para que seja possível a interpretação, bem como sua visualização racional, necessita-se da intermediação do eu observador, para que ele mesmo possa reconstruir a mesma imagem a partir de sua realidade. Para isso, tem de adequar seu olhar a essa leitura, não vista aqui como algo exclusivo do λόγος, mas a sua semelhança, quando se escaneia a imagem com o olhar e se busca depreender dessa as minúncias que se veem em seu todo. Pode-se dizer que essa leitura seja semelhante à linearidade textual, só que no texto, as imagens constroem-se linha a linha, enquanto nos não textuais (quadros, fotografias), vê-se de uma vez a totalidade significativa. Entretanto, essas significações explícitas, ou aquelas escondidas sob o velame da aparente totalidade sígnica, devem ser interpretadas, caso contrário, simplesmente se aceitará a pseudofacilidade interpretativa, minimizando o todo imagétco presente em uma obra, bem como o jogo da criação estabelecido por seu autor.
Dessa forma, nossa leitura/interpretação deve, primeiramente, passar por um processo análogo àquele proporcionado pelo λόγος, para que se estabeleça a clareza sígnica, levando seu leitor aos meandros do texto imagético: por necessitarmos de esclarecimentos, o extracampo, parece que a imagem sente necessidade das palavras, não quer ficar alijada delas, seja na forma de legenda, de comentário, de subtítulo ou mesmo de diálogos. (Cf.: Barthes, 2005: 97) Caso isso não ocorra, pode-se enxergar o que não existe, ver aquilo que se está propenso a ver, como na pareidolia, ou ainda ler, de forma adversa o que pretendiam informar.


(Figura 1: Entre o luxo e o lixo: a publicidade sacraliza o consumo e diviniza a posse. Playboy, 05/1988)

Exemplo dessa relação pode ser estabelecida a partir da figura 1, quando vemos um crucifixo posicionado sobre o capô de um carro de luxo (no lugar onde se costuma colocar o símbolo da empresa que o fabrica) numa atitude que pode suscitar algumas ponderações: alguns verão, na imagem, uma obra artística; outros, uma de mau gosto, de profanação da imagem religiosa.
Essa leitura, porém, dependerá daquele que pretende decodificá-la, pois poderá enxergar nela ou a) uma obra genial e ilustrativa das novas divindades fabricadas por nossa sociedade atual (quando a própria Divindade, representada pelo Cristo crucificado, está a serviço do consumo e do dinheiro, cujo símbolo está sob a cruz: a marca Rolls Royce); ou b) uma propaganda de extremo mau gosto que pretende denegrir a imagem de Jesus, ou mesmo usá-la como amuleto.
A legenda, nesse caso, é que será o diferencial entre o profanar e o moralizar, pode inclusive minimizar os ânimos referentes à utilização de um símbolo religioso em uma propaganda, a fim de demonstrar a que ponto chega a visão consumista de nossa sociedade, quando o mais importante não é o ser mas o ter.

O eu lírico e o eu fotográfico: similitudes
Como as palavras são imagens, estas podem evocar aquelas de modo particular na construição de poemas descritivos, devido à geminação entre os dois sistemas sígnicos, o lógico e o imagético. Houve inclusive um momento particular, os séculos XVI, XVII e meados do XVIII, em que os dois sistemas compartilharam um mesmo gênero, o emblemático. Entretanto, é possível verificar que essa relação ainda se mantém com duas grandes diferenças: a codificação social e a não estaticidade do signo linguístico.
Hoje, por exemplo, é possível que um código seja empregado de diversas formas em um curto espaço de tempo e, mesmo que haja um direcionamento específico para um determinado estrato social, isso não indetermina que um outro não possa ter acesso a sua chave sígnica, o que não ocorria, plenamente, nos Seiscentos. O mesmo se dá em relação a sua mobilidade ou estaticidade: o signo hoje não é estanque, devido ao próprio dinamismo de nossa sociedade, que busca, continuamente, a inovação, o diferente. Relação bem diferente da que se verificava, nos séculos destacados, pois aquela sociedade vivia sob a marca da μίμησις, ou seja, inexistia a inovação, mas a busca contínua pela imitação. Dessa forma, o novo para aquele momento eram as teorias advindas dos clássicos greco-romanos.
Atualmente, modismos linguísticos são criados e modificados num espaço de tempo cada vez menor, quando são ignorados pelas novas gerações que não os conseguem mais decodificar. Isso porque todos os sistemas de comunicação vivem no mundo das referências e dos significados relativos, por isso que os conjuntos de signos são dotados de certa mobilidade. Além disso, as palavras possuem vários significados, mais ou menos conexos entre si, que se ordenam e se precisam de acordo com seu lugar na oração, enquanto outros desaparecem ou se atenuam. (Cf.: Paz, 2005: 44)
O mesmo se dá, evidentemente, com determinados empregos imagéticos, cujo significado também é relativo, assim como na linguagem verbal:

Las imágenes son superficies significativas. En la mayoría de los casos, éstas significan algo “exterior”, y tienen la finalidad de hacer que ese “algo” se vuelva imaginable para nosotros, al abstraerlo, reduciendo sus cuatro dimensiones de espacio y tiempo a las dos dimensiones de un plano. A la capacidad específica de abstraer formas planas del espacio-tiempo “exterior”, y de re-proyectar esta abstracción del “exterior”, se le puede llamar imaginación. (Flusser, 1990: 11)

Como são dotados de significação, λόγος e είκών – palavra e imagem – são suscetíveis de interpretação, ou seja, não possuem existência sem que um olhar se detenha neles e decodifique a intenção que o eu lírico ou eu pictórico tinha em mente, apesar das possíveis distorções anacrônicas que tal ato possa suscitar. Dessa forma, o ato adentra na temporalidade:

Mientras la mirada registradora se desplaza sobre la superficie de la imagen, va tomando de ésta un elemento tras otro: establece una relación temporal entre ellos. También es posible que regrese a un elemento ya visto y, así, transforme el “antes” en un “después”. Esta dimensión temporal – como se reconstruye mediante el registro – es por tanto, una dimensión de regreso eterno. La mirada puede volver una y otra vez sobre el mismo elemento de la imagen, estableciéndolo como centro de significado de la imagen, el registro establece relaciones llenas de significado entre los elementos de la imagen. (ibidem, p 11-12)

Que fazemos, afinal, quando lemos um poema e nos vemos diante das imagens construídas pelo eu lírico? É próprio da linguagem poética esse ir e vir, o deter-se diante de suas imagens e ficar como que diante de um quadro, tentando depreender o que havía sido visto antes e o que se vê depois, para que se possa construir seu significado. Além disso, as imagens do poeta também têm sentido em diversos níveis e possuem autenticidade: o poeta as viu e ouviu, são a expressão genuína de sua visão e experiência do mundo (Cf.: Paz, 2005: 45), mesmo que pertençam a seu próprio mundo, por isso pouco importa se a verdade do poeta seja apenas de ordem psicológica (cf. ibidem: 45), correspondente ao ato criativo, à emanação de seu λόγος criador, porque, enquanto obra factível, torna-se real e objetiva:

essas imagens constituem uma realidade objetiva, válida por si mesma: são obras. Uma paisagem de Góngora não é a mesma coisa que uma paisagem natural, mas ambas possuem realidade e consistência, embora vivam em esferas distintas. São duas ordens de realidade paralelas e autônomas. (...) o poeta faz algo mais do que dizer a verdade; cria realidades que possuem uma verdade: a de sua própria existência. (ibidem: 45)

O poeta, portanto, além de criar o tempo próprio do poema, adentra numa outra dimensão: a da espacialidade. Esta não pertence sequer ao próprio criador, nem ao eu lírico, mas tão-somente à própria realidade da obra enquanto obra. É nela que a realidade se funde com o tempo, mas essa realidade é mágica, pertence ao mundo feérico:

tal relación espacio-tiempo reconstruida a partir de las imágenes es propia de la magia, donde todo se repite y donde todo participa de un contexto pleno de significado. El mundo de la magia difiere estructuralmente del mundo de la linealidad histórica, donde nada se repite jamás, donde todo es un efecto de causas y llega a ser causa de ulteriores efectos. (Flusser, 1990: 12)

A mágica maior, porém, é poder vislumbrar mundos novos sem que os mesmos tenham existido concretamente enquanto substância material, ou trazer mundos concretos e distantes para a palma da mão. Eis a magia que o λόγος nos propicia via literatura: tornar o virtual concreto, palpável, factível. Esse mesmo poder podemos, entretanto, conferir ao ato fotográfico, via τέχυη, quando se executa o ato de forma contrária: fazer da concretude, do tangível, do visível, virtual: seja no papel fotográfico, seja no écran de uma tela de computador. Eis que o fotógrafo também é poeta, na medida em que nos impele a ler suas metáforas imagéticas, na medida em que se torna um eu lírico-fotográfico:

Aquilo que antes só podia ser visto por olhos inteligentes pode agora ser visto por todos. Instruída pelas fotografias, qualquer pessoa é capaz de visualizar este conceito que era puramente literário, a geografia do corpo: por exemplo, fotografando uma mulher grávida de modo a que pareça um monte, ou um monte de forma a parecer uma mulher grávida. (Sontag, 1986: 94)

Por isso, não basta dizer que só o poeta é um fingidor, sendo um criador; o mesmo podemos afirmar do fotógrafo, afinal ele não é apenas um meio de que se vale um instrumento tecnicista para, unicamente, captar a luz refletida pelos seres, pela natureza, ou ainda pelos homens: também ele é criador de realidades diversas, na medida em que sua criação leva os outros a outros mundos que não sejam mais o seu: seja nas viagens temporais por um tempo distante, seja numa viagem espacial, para locais desconhecidos. Esses, porém, permanecerão em nossas próprias memórias, mesmo que não tenham existido em nossa realidade concreta, mas virtual.
Assim, podemos estabelecer relações entre a fotografia – enquanto expressão artística de um eu – e a literatura – que há muito já é considerada essa expressão –, levantando, inclusive, pontos de contatos entre as duas τέχυαι que poderão auxiliar na interpretação (recepção) literatura/fotografia, a partir da relação mimética com o mundo. Para tanto, faz-se necessário estabelecer uma relação entre a moldura fotográfica – como um fragmento da realidade percebida por esse eu – e a moldura estabelecida por um poema – um soneto, por exemplo – em que os quadros de palavras, fragmentados muitas vezes, estão delimitados pela métrica, ou simplesmente pelos espaços vazios do papel.


O fazer do eu fotográfico coincide, dessa forma, com o do eu lírico na criação imagética, na medida em que aquele também utilizará subjetividade em sua criação, em suas fotografias, assim como este. Dentre vários ângulos e pontos de vista que poderiam ser empregados, por exemplo, apenas um foi o escolhido . À semelhança de um poeta que tem de escolher, no léxico oferecido pela língua, as palavras que melhor se encaixam para representar as imagens desejadas – como no ato de catar feijão, segundo João Cabral de Melo Neto –, o fotógrafo também procura em seu campo de visão, que é o mundo, as melhores tomadas, registrando aquilo que os outros não veem ou passaria despercebido.
Dessa forma, a fotografia fixa o real, mas a partir de uma seleção subjetiva do conjunto de imagens que é o mundo, por meio de um eu individual, cuja visão também é única. Afinal, também não seria essa uma das prerrogativas da poética? A própria poesia depois de ter sido definida, durante muito tempo, como arte do verso, acabou sendo reconhecida, também, como arte da imagem. O poema não apenas carrega as significações que atuam sobre as palavras reunidas por ele, com também as organiza num assunto, numa cena, no sentido pictórico de ambos os termos. (Cf.: Dubois, 1980, 80-81)
Mas, um dos pontos mais importantes tanto na criação poética quanto na fotográfica é o da recordação, pois as imagens construídas por ambas têm o poder de fazer-nos ir a um tempo que não é mais o nosso, de rever os que não estão mais conosco, de visualizar aquilo que não existe mais:

A imagem reproduz o momento da percepção e força o leitor a suscitar dentro de si o objeto um dia percebido. O verso, a frase-ritmo, evoca, ressuscita, desperta, recria ou, como dizia Machado: não representa, mas apresenta. Recria, revive nossa experiência do real. Não vale a pena assinalar que essas ressurreições não são somente as de nossa experiência cotidiana, mas as de nossa vida mais obscura e remota. O poema nos faz recordar o que esquecemos: o que somos realmente. (Paz, 2003: 46)

Assim, fotografia e poesia fazem ressurgir aquele presente que estava ausente tanto de nosso inconsciente quanto no da sociedade, o mesmo que, algumas vezes, queria permanecer oculto, apesar de sabermos que está ali, na memória, mas num passe da mágica poética e fotográfica, é despertada e ressurge das cinzas, fazendo com que aquele presente ressurja novamente. No entanto, esse ressurgir não se dá de forma clara e ordenada, é construído.

O compromisso da poesia com o concreto e com a autonomia da linguagem é paralelo ao compromisso da fotografia com a visão pura. Ambos implicam descontinuidade, formas desarticuladas e unidades compensatórias: arrancar as coisas ao seu contexto (para que possam ser vistas de um modo novo), reuni-las elipticamente de acordo com as exigências imperiosas e por vezes arbitrárias da subjetividade. (Sontag, 1986: 90-91)

É isso o que acontece quando nos deparamos com a fotografia de Alexander Gardner (foto 1), em que vemos Lewis Payne, à espera de seu enforcamento:

A foto é bela , o jovem também: trata-se do studium. Mas o punctum é: ele vai morrer. Leio ao mesmo tempo: isso será e isso foi; observo com horror um futuro anterior cuja aposta é a morte. Ao me dar o passado absoluto da pose, a fotografia me diz a morte no futuro. (Barthes, 1984: 142)

Pelo fato de ser bela e de ele ser belo, essa fotografia foge ao lugar-comum daquilo que cremos ser um assassino, com isso somos desviados de seu intento – o de servir de exemplo para que outros não cometessem o mesmo crime, de mostrar o monstro a todos –, além disso podemos ser levados a pensar: como um jovem bonito assim poderia ter tentado tirar a vida a alguém? Que fatos concorreram para que praticasse atos desprezíveis? Ou ainda irmos mais fundo: não, ele não deve ter feito nada disso, basta olhar para dentro de seus olhos... Temos, no entanto, de subjugar nossa subjetividade, desviar nosso olhar dos olhos de Lewis e entrar na temporalidade/realidade que a fotografia retoma: ele vai morrer, mas já está morto e, a despeito de tudo o que dissermos ou especularmos, o ato já se concretizou, mesmo que tenhamos saído dos limites estabelecidos pela moldura.


Formação do acervo iconofotológico


Quando propomos fazer uma análise das imagens evocadas por poemas que abrangem os séculos XVI, XVII e XVIII, sempre vem a indagação: até que ponto podemos, ou não, utilizar uma imagem distinta daquela empregada por aqueles autores – a partir da ótica do século XXI –, já que não dispomos mais das preceptivas retóricas daqueles autores? É isso o que pretendemos discorrer com este artigo ao tentar apresentar como se dá a recepção des imagens poéticas extemporâneas em nossos dias, pois querer que as mesmas sejam decodificadas a partir do referencial daquele momento resultaria – para a maioria dos leitores de hoje – em anacronismo, afinal não dispomos mais daquelas determinações.
Acreditamos que a recepção imagética das imagens formadas por aqueles poetas se dá, hoje, por meio do acervo fotográfico que criamos ao longo de nossas vidas, à semelhança de um álbum virtual dos acontecimentos que nos cercam, constituído por anos de bombardeamento de imagens técnicas via mídia. É como se esse corpus virtual e latente ficasse à espera de um estímulo externo – como uma imagem evocada num poema, por exemplo – para que pudesse reaparecer, pois

Diante de uma experiência sensível (uma determinada variação do regime de luz, a percepção de um cheiro, o desenho formado por uma mancha de leite), atingimos um fragmento do passado que julgávamos esquecido ou perdido. (Guimarães, 1997, 180)

A fotografia, portanto, passa a ter a importância de monumento, enquanto reminiscência do que foi, pois para nós, sua função é a de tornar sempre claro, frente a nossos olhos, determinado período, acontecimento, pessoa ou pessoas. É como se nos dissesse: você não pode esquecer isso! À semelhança de um totem – o monumento que religaria os dois extremos temporais de um grupo social, tornando-se uma ponte entre o presente e o passado –, não deixa as lembranças por ele evocadas serem destruídas. Por ser rocha, o totem duraria o suficiente para que aquelas pessoas ou fatos dos quais não se queria esquecer fossem lembrados por gerações, até que se extinguissem todas as lembranças do motivo primeiro que o originou; quando, finalmente, ninguém mais saberá quais pessoas ou fatos os autores do monumento quiseram perpetuar. Dessa forma, uma das particularidades do monumento é a ideia de perpetuação, por isso

As sociedades antigas procuravam fazer com que a lembrança, substituto da vida, fosse eterna e que pelo menos a coisa que falasse da Morte fosse imortal: era o Monumento. Mas ao fazer da fotografia, mortal, o testemunho geral e como que natural ‘daquilo que foi’, a sociedade moderna renunciou ao Monumento (...) a Fotografia é um testemunho seguro, mas fugaz (...). (Barthes, 1984, 139)

Perpetuar um acontecimento também é uma forma de evitar que ele se repita se for contraproducente; ou que será rememorado, se benéfico; daí a importância de seu registro, seja fotográfico ou mesmo poético. A fotografia, portanto, passa a ser o combustível que reaviva a chama não só de nossa memória, como também de nossas emoções, pois, apesar de sua fugacidade – daí sua dessemelhança em relação ao totem, cuja aparência dá testemunho de perenidade (enquanto existir) –, também existirá com ela a eternização de uma determinada realidade. O tempo pode passar, certas pessoas podem não ter vivenciado a cena retratada, mas, à vista de uma fotografia, há a extemporização do momento, semelhante a uma viagem no tempo, por meio das imagens por ela evocadas. Além disso, pode não só nos revelar aquilo que estava na cena, como o que havia, provavelmente, por trás da mesma. Mesmo as mais corriqueiras atitudes passam a ser dignas de crédito quando fotografadas, mesmo a posteriori, ou seja, o mais banal dos acontecimentos reveste-se de grande importância , como se tudo girasse em torno de acontecimentos interessantes dignos de serem fotografados. Quando esses, porém, se extinguirem com o tempo, a fotografia estará lá, conferindo a eles não só importância como também imortalidade. (Cf.: Sontag, 1986: 21)
Justamente esse fato de que tudo vale a pena fotografar reforça seu aspecto trivial e fugaz, de algo sem importância, principalmente em uma sociedade repleta de imagens sem deferência. Todavia, essa falta de importância é uma demonstração de sua constante presentificação, ou seja, retrata o momento em que se está inserido e que corresponde ao presente retratado na fotografia: ambos se imiscuem num abraço envolvente, quando aquele presente passa a fazer parte deste presente, mesmo em seus aspectos mais rotineiros.
Essa relação, porém, mudará com o passar dos anos, pois tal foto, ao ser visualizada certo tempo depois, não mostrará mais a banalidade de um instante congelado, mas a totalidade de um momento que não estará exposto naquele papel-imagem, mas será reativado na memória de quem passou por aquele instante, ou mesmo por quem sempre ouviu falar dele; algo próximo da tradição oral de um povo, repetidas de geração em geração, ao lado do fogo. Quantas vezes pessoas ouviram histórias de um momento qualquer que fora retratado numa foto e ao vê-la, in loco, são capazes de enxergar além de seu enquadramento, sem ter estado lá, à semelhança de um déjà vu? Dessa forma, a fotografia impele-nos ao saudosismo, à rememoração, à busca de um elo perdido, à nostalgia:

A fotografia é uma arte elegíaca, uma arte crepuscular. A maior parte dos temas fotografados são, pelo simples fato de serem fotografados, afetados pelo pathos. Um tema feio ou grotesco pode ser comovente por ter sido dignificado pela atenção do fotógrafo. Um tema belo pode provocar sentimentos de compaixão por ter envelhecido, perdido importância ou já não existir. (ibidem: 24)

Semelhante ao valor testemunhal evocado pela fotografia e seu propósito de perpetuar-se no tempo como um monumento, temos a linguagem poética. Esta, diferentemente da linguagem comum, tem como atributo próprio o fato de durar (Cf. Levin, 1975: 103), enquanto aquela – centrada na função referencial – não se mantém, visto que, a partir do momento que compreendemos o que diz, é substituída em nossas mentes pelo que significou (ibidem: 103), torna-se, portanto, sem valor e é apagada. Na poesia, tanto a forma quanto sua disposição no papel permanecem, já que as mensagens poéticas desfrutam de uma permanência que a linguagem comum não possui. Não se quer dizer com isso que um poema possa perdurar por gerações ou séculos enquanto realidade palpável (representado pelo próprio papel), mas pelo fato de sua permanência – tanto na mente individual, quanto na coletiva – prescindir, inclusive, de elementos concretos, à semelhança da Idade Média em relação aos jograis, menestréis e trovadores.
Assim sendo, o poema também teria uma função de monumento, religaria o presente ao passado e, sendo memorável, perpetuar-se-ia na memória, na recordação e na lembrança da posteridade. Dessa forma, tanto o poema quanto a fotografia poderiam ser indicadores de autenticidade de um tempo que já está distante do nosso e, à semelhança da Bíblia, ser de outro modo comunicadores históricos em meio à função retórica. Quantos não empregaram suas vidas para tentar provar que as imagens bíblicas eram uma cópia fidedigna da realidade passada? Entretanto, esses haviam se esquecido de que o Livro não é meramente histórico, mas poético e que nem todos seus poemas são, segundo nossa ideia, fotográficos.
Um dos liames, por exemplo, que aproxima a fotografia da arte seiscentista e que suscitara, inclusive, minha Tese de doutoramento é a edificação da morte que se encontra nas duas. Contudo, a morte não em seu sentido de término, mas como perpetuação, uma constante ressurreição daquilo que foi fotografado ou daquilo que foi descrito num poema. Ambas as imagens detêm o tempo, quando a temporalidade do objeto separa-se daquela do sujeito (Virilio, apud Guimarães, 1997: 48), ou seja, imortaliza o que é mortal, apesar de serem memento mori. Fotografar, por exemplo, é participar na mortalidade, vulnerabilidade e mutabilidade de uma outra pessoa ou objeto, testemunhando a inexorável dissolução do tempo, precisamente por selecionar e fixar um determinado momento. (Cf.: Sontag, 1986: 24)


(Foto 1: Fotografia de Lewis Payne, de Alexander Gardner, 1865)

Ao selecionar esse momento qualquer, é como se disséssemos a ele: tenha vida eterna! Viva mais do que seu próprio referente, de sua própria emanação primeira. Eis porque o ato de fotografar é dedicar-se à captura da morte:

Pois é preciso que a Morte, em uma sociedade, esteja em algum lugar; se não está mais (ou está menos) no religioso, deve estar em outra parte: talvez nessa imagem que produz a Morte ao querer conservar a vida. Contemporânea do recuo dos ritos, a Fotografia corresponderia talvez à intrusão, em nossa sociedade moderna, de uma Morte assimbólica, fora da religião, fora do ritual, espécie de brusco mergulho na Morte literal. A Vida/a Morte: o paradigma reduz-se a um simples disparo, o que separa a pose inicial do papel final. (Barthes, 1984: 138)

Leitura iconofotológica e o poema fotográfico

Vê-se, portanto, com o advento da fotografia, a renúncia do monumento utilizados pelos antigos para celebrar a morte, ou ainda toda uma visão iconológica cujo tema é exatamente o mesmo, mas os recursos são totalmente diversos. Com a fotografia a morte existe (e reside) a partir do presente perpétuo; nos Seiscentos, por outro lado, é retratada exatamente pelo seu futuro, ou seja, a descarnação total do ser: o esqueleto.

Se o século XV havia mostrado uma verdadeira obsessão pela morte, o XVII (...) supera-o e consegue dar uma versão ainda mais temível e impressionante: se na Idade Média a morte é, na arte e no pensamento, uma ideia teológica, e no espetáculo popular das danças macabras se apresenta com um caráter didático geral e impessoal, agora é tema de uma experiência que afeta a cada um em particular e causa uma dolorosa convulsão. (Maravall, 1997: 268)

Quando Maravall fala em espetáculo, tais palavras podem soar como metafóricas, visto que a tópica do palco do mundo também encontra eco no momento derradeiro, no entanto, não é o que se via nos Seiscentos, segundo Flemming:

Selbst in den letzten Stunden fühlt das Ich sich nicht allein; stets stehen die anderen als Zuschauer herum, nach deren Beifall man verlangt. So endet das Leben, wie es überhaupt empfunden und geführt wurde: als Schauspiel. Selbst noch im Tode, ja noch drüber hinaus im Grabstein. (Flemming, 1937: 26)

Tanto a fotografia quanto a poesia dos Seiscentos acabam tratando, mesmo que não diretamente, do memento mori: uma porque perpetualiza o momento (embalsamando-o), outra porque essa própria tópica já faz parte de sua própria Weltanschauung. Assim, na fotografia, é como se olhássemos em um espelho e, de um lado, víssemos refletido nosso presente; e de outro, concomitantemente, o futuro e o passado. Evidentemente, não nos é permitido ver o futuro, dessa forma, temos de restringir esse olhar para o presente, mas enquanto realidade que já passou, pois o nosso é um período posterior àquele verificado e concretizado pela fotografia. Por outro lado, pode-se considerar a poesia como um reflexo especular tanto da linguagem humana – por apresentar os níveis fônico e semântico –; quanto da alma humana – por refletir aquilo de que o homem está impregnado: a totalidade de seu ser, seus pensamentos e emoções.
Se se pode, portanto, considerar a poesia como portadora de reflexo especular, que dizer, então, da fotografia que há muito não só reflete o que está diante de uma câmera, como também tem o poder de fixá-lo? Isso já seria suficiente para que pudéssemos começar a cotejar a poesia com a fotografia em relação à especularidade de sua reprodução imagética, afinal a foto além de aprisionar a imagem, que tem diante de si, também revela as minúcias que se querem (ou se queriam) manter escondidas.
Há, além disso, o fato de ambas, por sua própria estrutura e emprego, manterem-se perenes, eternizadas por meio do papel, algo extremamente frágil e perecível. Que é o homem senão a totalidade de um ser perecível – seu corpo – juntamente com um imortal – sua alma? Mesmo que não exista Deus, nem religião, nem uma alma eterna, o homem já seria eterno, por poder perpetuar-se por meio de sua obra, de sua τέχυη e de seu λόγος e de ter consciência disso.
Vê-se, portanto, que o liame que une a poesia e a fotografia não é tão tênue a ponto de romper-se tão facilmente quanto poderia parecer inicialmente. Não é possível dissociar λόγος, είκών e τέχυη, afinal todos fazem parte de uma trindade constitutiva do espírito do homem que o torna um ser diferente dos outros por meio da ratio que lhe é inerente.
Diante disso, não se constituiria um contrassenso chamar um poema de fotográfico, nem uma fotografia de poética, como propomos. Assim, poderíamos chamar de fotográfico um poema, cujo poeta não tenha tido ele mesmo a influência direta da fotografia, mas aquele cujo leitor tenha sofrido a influência dela, já que são as imagens verbais contidas nessa estrutura linguística que revelam, justamente, as imagens fotográficas que permeiam nossa memória, o que chamo de acervo iconofotológico. Esse também nos faz refletir a respeito da própria obra poética e do mundo em que ela está inserida; quando, via contemplação imagética – que não passa de uma atividade orientada para a captura da significação, já que esta não é imanente a obra, mas dependente não de uma única, mas de várias leituras – entendida como um conjunto de processos de decodificação, de associação com uma série indefinida de mensagens, lembranças, afetos, multiplicidades intensivas ou qualidade existenciais (Lévy, apud ALMEIDA, 2006: 89), abre a chave da sígnificação por meio da substituição de uma imagem lógica por outra fotográfica, latente em nossa memória, à espera de um estímulo que a faça sair de sua letargia.
É inconteste que esse start em nossa memória não se dê somente via imagens visuais, mas também por meio de imagens acústicas – quando determinada música nos faz lembrar de um momento perdido no tempo, mas que está guardado em nosssa inconsciência – ou palativo-olfativas – quando um perfume, a fragrância de uma flor, o cheiro de terra molhada, ou a essência de um determinado tempero produzem-nos efeito semelhante.
Para o neurocientista Jean-Pierre Changeux, por exemplo, tanto na contemplação como no que se convencionou chamar prazer estético intervêm processos distintos que vão da a) pura sensação – apreensão da superfície colorida e das formas –; passando pela b) percepção – atividade de reconhecimento de formas e figuras –, que despertará, em ressonância com as imagens internas armazenadas pelo espectador (a memória), uma síntese significatica da obra (compreensão). (Cf.: ibidem: 89) Assim, contemplação e prazer estético implicam em operações e faculdades distintas, recrutando, neurologicamente, tanto estados de atividade do sistema límbico (o cérebro das emoções) como re¬presentações mais sintéticas do córtex frontal (relacionado ao raciocínio e à razão).
A contemplação, portanto, seria orientada para capturar sentidos sígnicos que não são imanentes à obra , mas que pressupõem a utilização de nosso acervo iconofotológico, de onde retiraríamos imagens que preencheriam as que vão se formando durante a leitura que fazemos por meio do λόγος (poemas ou romances, por exemplo), a fim de que possamos visualizar o todo proposto pelo autor. É evidente que esse todo será lido de forma subjetiva e nunca corresponderá àquilo que o mesmo concebera originalmente.
Quem lê, despretensiosa e mecanicamente, um texto poético qualquer, sem nenhuma dedicação para apreendê-lo, poderá não ter aguçada sua memória fotográfica , a menos que alguma imagem evocada punja-o e retire-o do texto – servindo-lhe de punctum – e leve-o a procurar seu correspondente em seu acervo iconofotológico; mas, para isso, a imagem precisa ser retirada do meio em que está inserida ou disposta, por meio da supressão daquelas que lhe são contíguas. (Cf. Bergson, 1999: 24) É nesse momento que ocorre a ativação da memória, a ressurreição de um passado que não existe mais, visto que já estava morto: Desaparecidas a terra de origem e sua língua, é a narração que se torna ela própria uma terra que faz renascer (Guimarães, 1997: 150), assim os últimos restos, remanescentes e cacos de algo que estava irrecuperavelmente perdido e não poderia mais ser recomposto por nenhum artifício do mundo. (Handke, apud Guimarães: 150)
Tais cacos, portanto, podem ressurgir, mas de forma sempre individual, por meio da literatura, por meio de poemas fotográficos. Esses são aqueles cujas imagens têm trânsito em diversos tempos, ou seja, aparentemente não demonstram ser somente inerentes a um determinado período. No entanto, como há uma mudança do signo linguístico ao longo dos anos, aquilo que parecia óbvio num determinado momento, não será mais em outro; dessa forma, o que parecia diacronia, não passa de uma ilusão sincrônica.
A leitura de poemas fotográficos, portanto, sempre é iconofotológica, visto que é efetuada a partir da sincronia, desde que as palavras/imagens empregadas pelo poeta sejam de livre acesso temporal, ou seja, perfeitamente perceptíveis em qualquer tempo, por isso os poemas que indicam catástrofes e guerras – inerentes ao todo humano – normalmente são fotográficos.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Júlia de. “Entre texto e imagem: título e quadro”. In Alceu, v. 6, n. 12, Rio de Janeiro, 28-41, 2006.
BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.
BENJAMIM, Walter. Sociologia (org. Flávio R. Kothe) 2ª ed. São Paulo, Ática, 1991.
BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo, Martins Fontes, 1999.
BONFIGLIOLI, Cristina P. “Representação e pensamento: a visibilidade dependente”, in Compós: Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, 2008 (retirado de http://www.compos.org.br/data/biblioteca_296.pdf)
BRANDÃO, Antônio Jackson S. Iconofotologia do Barroco alemão. Tese de doutorado apresentada à Universidade de São Paulo, 2008.
___________ . “Sistemas de representação na arte barroca”. In Revista Eutomia, UFPE, Recife. 2008.
DUBOIS, J. et alii. Retórica geral. São Paulo, Cultrix-Edusp, 1974.
__________. Retórica da poesia: leitura linear, leitura tabular. Cultrix-Edusp, 1980.
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas, Papirus, 2006.
FLEMMING, Willi. Deutsche Kultur im Zeitalter des Barock. Potsdam, Akademische Verlagsgesellschafte Athenaion, 1937.
FLUSSER, Vilém. Hacia una filosofía de la fotografía. México, Trillas-Sigma, 1990.
GUIMARÃES, César. Imagens da memória: entre o legível e o visível. Belo Horizonte, Fale/UFMG, 1997.
LEVIN, Samuel. Estruturas lingüísticas em poesia. São Paulo, Cultrix, 1975.
MARAVALL, José Antonio. A cultura do Barroco: análise de uma estrutura histórica. São Paulo, 1997.
PAZ, Octavio. Signos em rotação. São Paulo, Perspectiva, 1976.
SONTAG, Susan. Ensaios sobre fotografia. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1986.

A iconofotologia: entre o lógos poético, o eikon e a techné fotográfica

Prof. Dr. Antônio Jackson de Souza Brandão

Resumo: O presente artigo propõe uma nova abordagem da leitura de textos de períodos extemporâneos e, para isso, fez-se necessário criar novos termos que correspondessem a essa expectativa: a iconofotologia e poemas fotográficos. Para que um leitor contemporâneo possa ler e compreender textos retóricos dos séculos XVI, XVII e XVIII, teria de ter acesso a uma chave sígnica a que somente seus leitores tinham acesso: as iconologias. No entanto, esse referencial se perdeu, por isso o substituímos por um outro, a partir do acervo imagético-fotográfico de que dispomos hoje e que chamamos de iconofotológico. A partir dele, será possível lermos, sob o ponto de vista contemporâneo (não sob o ponto de vista seiscentista, por exemplo), os poemas que denominamos fotográficos.

Palavras-chave: Iconofotologia, poema fotográfico, poesia, fotografia, iconologia
Abstract: The present article intends to give a new approach to the reading of texts from the untimely periods and, for that, it was necessary to create new terms that corresponded to this expectation: the iconophotology and photographic poems. In order to enable a reader to read and understand rhetorical texts from 16th, 17th and 18th centuries, he would have to have access to a signical key to which only readers of that moment had access: the iconologies. However, such reference has been lost; therefore, we have to replace it by another one, from the imagetic-photographic collection we have, which is called iconophotological. With this premise, it will be possible to read, under the contemporary point of view (not under the baroque point of view), the so-called photographic poems.

Keywords: Iconophotology, photographic poem, poetry, photography, iconology,


Introdução

A relação entre a imagem pictórica e a poética já possui longa tradição. Ambas caminharam juntas durante séculos, apesar dos paragoni que buscavam ressaltar a predominância de uma sobre a outra. No entanto, o que se pretende com este artigo não é tratar dessa relação, mas tentar estabelecer uma outra entre a leitura de textos literários extemporâneos (dos séculos XVI, XVII e XVIII) – restritos à poesia descritiva – e a fotografia. Obviamente, essa relação não se dará por meio dos pressupostos retóricos daquele período, devido ao anacronismo, mas a partir da recepção imagética que fazemos hoje daquelas imagens, aparentemente, descritivas.
Diferentemente de séculos anteriores, fazemos hoje uso distinto das regras retóricas e de suas imposições. Isso não significa, contudo, que as figuras retóricas tenham sido abolidas, afinal constituem a essência do fazer poético (e literário):

(...) não há poesia sem figuras, conquanto se entenda ‘figuras’ num sentido suficientemente amplo: toda mensagem literária é necessariamente ritmada, rimada, assonante, graduada, cruzada, oposta, etc. Mas, evidentemente, há figuras sem poesia (...). (Dubois, 1974: 41)

A partir do Modernismo, a arte pictórica e a literária ampliaram seus horizontes por meio de uma verdadeira revolução e parte desse processo deveu-se ao advento da fotografia no século XIX. Sua repercussão verificou-se não só naquele momento como em todo o século XX, afetando, inclusive, nossa relação com o mundo imagético, seja no campo da artes pictóricas seja no da literatura. Houve também, no início do século passado, uma reaproximação entre palavra e pintura, como demonstraram alguns experimentos vanguardistas. Hoje, por sua vez, palavra e imagem (em sua grande maioria fotográfica) também são largamente empregadas na (e pela) linguagem publicitária.
No entanto, diante do domínio da imagerie que estamos presenciando, vêm-nos algumas questões que já se tornaram, inclusive, lugares-comuns: a imagem sempre vai superar o λόγος (lógos) na apreensão do mundo que nos cerca? Ou ainda: uma imagem vale por mil palavras?

A imagem prescinde do λόγος?

O λόγος tem o poder de representar-se e de representar aquilo que está a nossa volta e, mesmo diante do assédio proporcionado pelo turbilhão imagético-fotográfico, continua demonstrando sua hegemonia. Pode-se verificar isso quando, diante de uma fotografia – seja em revistas, jornais, outdoors – necessitamos, muitas vezes, da legenda para que, por meio desta, possamos explicar aquela e torná-la mais legível ou mesmo inteligível.
Por mais estranho que seja falar em busca por inteligibilidade, não se deve esquecer de que ainda há, por parte de muitas pessoas, a convicção de a imagem fotográfica representar uma cópia fiel da realidade, logo prescindiria de qualquer explicação, afinal, falaria por si mesma. No entanto, devido às inúmeras possibilidades auferidas pelos recentes softwares de edição de imagens, esse mito vem, pouco a pouco sendo desfeito: já se tem consciência de que a fotografia possa sofrer várias manipulações; e, acrescente-se a isso, sua propagação sem limites e a facilidade de sua obtenção.
Atualmente, muitas pessoas já têm o hábito de desconfiar do que veem: realmente é a fulana que está aqui? Aquela foto não é uma montagem? Esse desconfiar do fotográfico está se tornando constante (deve-se ter em mente que uma das funções da fotografia era, exatamente, o contrário, a comprovação), principalmente devido à infinita acessibilidade e dissiminação imagéticas proporcionadas pela internet, que demonstram, inclusive, a crescente idolatria (είδωλον + λατρεία – culto à imagem) de nossa sociedade.
Diante dessa desconfiança incipiente, surge a necessidade comprobatória da legenda que negará ou afirmará uma possível manipulação efetuada numa imagem, naquilo que ela possa significar, ou naquilo em que queiramos (ou não) acreditar. Isso é auferível quando se vê que, apesar da constatação proporcionada por uma fotografia jornalística – comprovadamente sem montagem –, muitos ainda insistem em dizer que ela sofreu manipulação, preferindo acreditar naquilo que querem, ou seja, em sua verdade, afinal:

cada fotografia é um fragmento, o seu peso moral e emocional depende do conjunto em que se insere. Uma fotografia muda em função do contexto em que é vista: por isso, as fotografias de Smith sobre Minamata parecerão diferentes numa prova de contato, numa galeria, numa demonstração política, num arquivo policial, numa revista de fotografia, numa revista de atualidades, num livro, numa parede da sala de estar. Cada uma destas situações sugere um uso diferente para as fotografias, mas nenhuma pode fixar seu significado. (Sontag, 1986: 99)

Devem-se estabelecer os limites sígnicos da fotografia e, para que isso seja possível, faz-se necessário o uso do λόγος: ele que certificará aquilo em que temos de acreditar; se houve ou não manipulação na fotografia; qual sua intenção; qual seu significado, pois

Ocorre em relação a cada fotografia o que Wittgenstein afirmava sobre as palavras: o significado é o uso. E é por isso mesmo que a presença e a proliferação de todas as fotografias contribui para a erosão da própria noção de significado, para estilhaçar a verdade em verdades relativas, o que hoje é aceite sem reservas pela consciência liberal moderna. (ibidem: 99)

Isso faz com que acabemos sendo impelidos ou a acreditar em tudo o que temos diante de nossos olhos, ou a não acreditar em nada e ver tudo como mera ilusão, como se estivéssemos num deserto, cercados de miragens por todos os lados, até o momento de descobrirmos que elas não o eram totalmente: nós é que não conseguíamos tocar o que queríamos, as imagens-objeto fugiam a nosso toque. Isso se complica ainda mais, no entanto, não devido à imagem em si, mas às palavras que a explicam, já que quando estas se juntam àqueles somos obrigados a acreditar.
Flusser comprova isso ao dizer que, já no século XIX, se verificava algo semelhante, quando os próprios textos haviam se tornado, naquele momento, inimagináveis diante do alto grau de complexidade alcançado pela textolatría: o deserto deixara de ser imagético e passara a ser lógico:

En el sentido más estricto, este fue el fin de la historia, la cual, en este sentido estricto, es la transcodificación progresiva de las imágenes en conceptos, la explicación progresiva de las imágenes, el progresivo desencantamiento, la conceptualización progresiva. Donde los textos ya no son imaginables, no hay nada más qué explicar, y la historia cesa.
Precisamente en esta etapa crítica, en el siglo XIX, se inventaron las imágenes técnicas a fin de hacer los textos nuevamente imaginables, para colmarlos de magia y, así, superar la crisis de la historia. (Flusser, 1990: p 14-15)

Paradigmas podem (e devem) ser quebrados e aquilo que o senso comum afirma, pode ser contestado. Isso serve, sem dúvida, à afirmação de que nossa sociedade prefere, incontestavelmente, as imagens às palavras. No entanto, a imagem nem sempre pode prescindir da palavra e de sua logicidade para se clarificar; isso se faz necessário para que se possa depreender daquela muito mais do que pigmentação, incidência da luz, ou sua referencialidade, já que:

O mundo das imagens não é, necessariamente, imagem de mundo, mas cópias mal-ajambradas de visões de mundo estereotipadas e tacanhas. Daí a facilidade com que a lógica do texto se impõe, inclusive nos forçando a olhar o mundo apresentado por imagens com desconfiança maior do que o mundo apresentado por textos. (Bonfiglioli, 2008: 7)

Logicamente, tal afirmação quebra, novamente, o lugar-comum que nos expõe a possibilidade de as imagens prescindirem do λόγος. Não se deve esquecer, porém, de que λόγος e είκών (eikón) – palavra e imagem – vindos de uma fonte comum, a natureza – via ίς (mimese) – acabaram se completando e imiscuindo-se durante a trajetória humana – como no gênero emblemático , ou mesmo em alguns movimentos vanguardistas do século XX. Isso também pressupõe que a imagem deva ser lida e sua tessitura desmontada, à semelhança do texto escrito, a fim de que seja possível extrair o máximo de informação interpretativa do mesmo , quando se depreenderá todos seus elementos constitutivos – como na leitura iconológica de Panofsky, por exemplo.
Para que isso seja possível, o papel do leitor é importante, pois à semelhança do texto logocêntrico, no imagético, também é o leitor que tem de se relacionar com a obra e, a partir de sua Weltanschauung ter a possibilidade, ou não, de depreender sua significação. Dessa forma, não é a aparente objetividade da imagem que atuará naquele que lê, facilitando ou não a leitura, mas a capacidade do leitor em fazê-la.
Assim, para que seja possível a interpretação, bem como sua visualização racional, necessita-se da intermediação do eu observador, para que ele mesmo possa reconstruir a mesma imagem a partir de sua realidade. Para isso, tem de adequar seu olhar a essa leitura, não vista aqui como algo exclusivo do λόγος, mas a sua semelhança, quando se escaneia a imagem com o olhar e se busca depreender dessa as minúncias que se veem em seu todo. Pode-se dizer que essa leitura seja semelhante à linearidade textual, só que no texto, as imagens constroem-se linha a linha, enquanto nos não textuais (quadros, fotografias), vê-se de uma vez a totalidade significativa. Entretanto, essas significações explícitas, ou aquelas escondidas sob o velame da aparente totalidade sígnica, devem ser interpretadas, caso contrário, simplesmente se aceitará a pseudofacilidade interpretativa, minimizando o todo imagétco presente em uma obra, bem como o jogo da criação estabelecido por seu autor.
Dessa forma, nossa leitura/interpretação deve, primeiramente, passar por um processo análogo àquele proporcionado pelo λόγος, para que se estabeleça a clareza sígnica, levando seu leitor aos meandros do texto imagético: por necessitarmos de esclarecimentos, o extracampo, parece que a imagem sente necessidade das palavras, não quer ficar alijada delas, seja na forma de legenda, de comentário, de subtítulo ou mesmo de diálogos. (Cf.: Barthes, 2005: 97) Caso isso não ocorra, pode-se enxergar o que não existe, ver aquilo que se está propenso a ver, como na pareidolia, ou ainda ler, de forma adversa o que pretendiam informar.
Exemplo dessa relação pode ser estabelecida a partir da figura 1, quando vemos um crucifixo posicionado sobre o capô de um carro de luxo (no lugar onde se costuma colocar o símbolo da empresa que o fabrica) numa atitude que pode suscitar algumas ponderações: alguns verão, na imagem, uma obra artística; outros, uma de mau gosto, de profanação da imagem religiosa.
Essa leitura, porém, dependerá daquele que pretende decodificá-la, pois poderá enxergar nela ou a) uma obra genial e ilustrativa das novas divindades fabricadas por nossa sociedade atual (quando a própria Divindade, representada pelo Cristo crucificado, está a serviço do consumo e do dinheiro, cujo símbolo está sob a cruz: a marca Rolls Royce); ou b) uma propaganda de extremo mau gosto que pretende denegrir a imagem de Jesus, ou mesmo usá-la como amuleto.
A legenda, nesse caso, é que será o diferencial entre o profanar e o moralizar, pode inclusive minimizar os ânimos referentes à utilização de um símbolo religioso em uma propaganda, a fim de demonstrar a que ponto chega a visão consumista de nossa sociedade, quando o mais importante não é o ser mas o ter.

O eu lírico e o eu fotográfico: similitudes
Como as palavras são imagens, estas podem evocar aquelas de modo particular na construição de poemas descritivos, devido à geminação entre os dois sistemas sígnicos, o lógico e o imagético. Houve inclusive um momento particular, os séculos XVI, XVII e meados do XVIII, em que os dois sistemas compartilharam um mesmo gênero, o emblemático. Entretanto, é possível verificar que essa relação ainda se mantém com duas grandes diferenças: a codificação social e a não estaticidade do signo linguístico.
Hoje, por exemplo, é possível que um código seja empregado de diversas formas em um curto espaço de tempo e, mesmo que haja um direcionamento específico para um determinado estrato social, isso não indetermina que um outro não possa ter acesso a sua chave sígnica, o que não ocorria, plenamente, nos Seiscentos. O mesmo se dá em relação a sua mobilidade ou estaticidade: o signo hoje não é estanque, devido ao próprio dinamismo de nossa sociedade, que busca, continuamente, a inovação, o diferente. Relação bem diferente da que se verificava, nos séculos destacados, pois aquela sociedade vivia sob a marca da ίς, ou seja, inexistia a inovação, mas a busca contínua pela imitação. Dessa forma, o novo para aquele momento eram as teorias advindas dos clássicos greco-romanos.
Atualmente, modismos linguísticos são criados e modificados num espaço de tempo cada vez menor, quando são ignorados pelas novas gerações que não os conseguem mais decodificar. Isso porque todos os sistemas de comunicação vivem no mundo das referências e dos significados relativos, por isso que os conjuntos de signos são dotados de certa mobilidade. Além disso, as palavras possuem vários significados, mais ou menos conexos entre si, que se ordenam e se precisam de acordo com seu lugar na oração, enquanto outros desaparecem ou se atenuam. (Cf.: Paz, 2005: 44)
O mesmo se dá, evidentemente, com determinados empregos imagéticos, cujo significado também é relativo, assim como na linguagem verbal:

Las imágenes son superficies significativas. En la mayoría de los casos, éstas significan algo “exterior”, y tienen la finalidad de hacer que ese “algo” se vuelva imaginable para nosotros, al abstraerlo, reduciendo sus cuatro dimensiones de espacio y tiempo a las dos dimensiones de un plano. A la capacidad específica de abstraer formas planas del espacio-tiempo “exterior”, y de re-proyectar esta abstracción del “exterior”, se le puede llamar imaginación. (Flusser, 1990: 11)

Como são dotados de significação, λόγος e είκών – palavra e imagem – são suscetíveis de interpretação, ou seja, não possuem existência sem que um olhar se detenha neles e decodifique a intenção que o eu lírico ou eu pictórico tinha em mente, apesar das possíveis distorções anacrônicas que tal ato possa suscitar. Dessa forma, o ato adentra na temporalidade:

Mientras la mirada registradora se desplaza sobre la superficie de la imagen, va tomando de ésta un elemento tras otro: establece una relación temporal entre ellos. También es posible que regrese a un elemento ya visto y, así, transforme el “antes” en un “después”. Esta dimensión temporal – como se reconstruye mediante el registro – es por tanto, una dimensión de regreso eterno. La mirada puede volver una y otra vez sobre el mismo elemento de la imagen, estableciéndolo como centro de significado de la imagen, el registro establece relaciones llenas de significado entre los elementos de la imagen. (ibidem, p 11-12)

Que fazemos, afinal, quando lemos um poema e nos vemos diante das imagens construídas pelo eu lírico? É próprio da linguagem poética esse ir e vir, o deter-se diante de suas imagens e ficar como que diante de um quadro, tentando depreender o que havía sido visto antes e o que se vê depois, para que se possa construir seu significado. Além disso, as imagens do poeta também têm sentido em diversos níveis e possuem autenticidade: o poeta as viu e ouviu, são a expressão genuína de sua visão e experiência do mundo (Cf.: Paz, 2005: 45), mesmo que pertençam a seu próprio mundo, por isso pouco importa se a verdade do poeta seja apenas de ordem psicológica (cf. ibidem: 45), correspondente ao ato criativo, à emanação de seu λόγος criador, porque, enquanto obra factível, torna-se real e objetiva:

essas imagens constituem uma realidade objetiva, válida por si mesma: são obras. Uma paisagem de Góngora não é a mesma coisa que uma paisagem natural, mas ambas possuem realidade e consistência, embora vivam em esferas distintas. São duas ordens de realidade paralelas e autônomas. (...) o poeta faz algo mais do que dizer a verdade; cria realidades que possuem uma verdade: a de sua própria existência. (ibidem: 45)

O poeta, portanto, além de criar o tempo próprio do poema, adentra numa outra dimensão: a da espacialidade. Esta não pertence sequer ao próprio criador, nem ao eu lírico, mas tão-somente à própria realidade da obra enquanto obra. É nela que a realidade se funde com o tempo, mas essa realidade é mágica, pertence ao mundo feérico:

tal relación espacio-tiempo reconstruida a partir de las imágenes es propia de la magia, donde todo se repite y donde todo participa de un contexto pleno de significado. El mundo de la magia difiere estructuralmente del mundo de la linealidad histórica, donde nada se repite jamás, donde todo es un efecto de causas y llega a ser causa de ulteriores efectos. (Flusser, 1990: 12)

A mágica maior, porém, é poder vislumbrar mundos novos sem que os mesmos tenham existido concretamente enquanto substância material, ou trazer mundos concretos e distantes para a palma da mão. Eis a magia que o λόγος nos propicia via literatura: tornar o virtual concreto, palpável, factível. Esse mesmo poder podemos, entretanto, conferir ao ato fotográfico, via τέχυη, quando se executa o ato de forma contrária: fazer da concretude, do tangível, do visível, virtual: seja no papel fotográfico, seja no écran de uma tela de computador. Eis que o fotógrafo também é poeta, na medida em que nos impele a ler suas metáforas imagéticas, na medida em que se torna um eu lírico-fotográfico:

Aquilo que antes só podia ser visto por olhos inteligentes pode agora ser visto por todos. Instruída pelas fotografias, qualquer pessoa é capaz de visualizar este conceito que era puramente literário, a geografia do corpo: por exemplo, fotografando uma mulher grávida de modo a que pareça um monte, ou um monte de forma a parecer uma mulher grávida. (Sontag, 1986: 94)

Por isso, não basta dizer que só o poeta é um fingidor, sendo um criador; o mesmo podemos afirmar do fotógrafo, afinal ele não é apenas um meio de que se vale um instrumento tecnicista para, unicamente, captar a luz refletida pelos seres, pela natureza, ou ainda pelos homens: também ele é criador de realidades diversas, na medida em que sua criação leva os outros a outros mundos que não sejam mais o seu: seja nas viagens temporais por um tempo distante, seja numa viagem espacial, para locais desconhecidos. Esses, porém, permanecerão em nossas próprias memórias, mesmo que não tenham existido em nossa realidade concreta, mas virtual.
Assim, podemos estabelecer relações entre a fotografia – enquanto expressão artística de um eu – e a literatura – que há muito já é considerada essa expressão –, levantando, inclusive, pontos de contatos entre as duas τέχυαι que poderão auxiliar na interpretação (recepção) literatura/fotografia, a partir da relação mimética com o mundo. Para tanto, faz-se necessário estabelecer uma relação entre a moldura fotográfica – como um fragmento da realidade percebida por esse eu – e a moldura estabelecida por um poema – um soneto, por exemplo – em que os quadros de palavras, fragmentados muitas vezes, estão delimitados pela métrica, ou simplesmente pelos espaços vazios do papel.
O fazer do eu fotográfico coincide, dessa forma, com o do eu lírico na criação imagética, na medida em que aquele também utilizará subjetividade em sua criação, em suas fotografias, assim como este. Dentre vários ângulos e pontos de vista que poderiam ser empregados, por exemplo, apenas um foi o escolhido . À semelhança de um poeta que tem de escolher, no léxico oferecido pela língua, as palavras que melhor se encaixam para representar as imagens desejadas – como no ato de catar feijão, segundo João Cabral de Melo Neto –, o fotógrafo também procura em seu campo de visão, que é o mundo, as melhores tomadas, registrando aquilo que os outros não veem ou passaria despercebido.
Dessa forma, a fotografia fixa o real, mas a partir de uma seleção subjetiva do conjunto de imagens que é o mundo, por meio de um eu individual, cuja visão também é única. Afinal, também não seria essa uma das prerrogativas da poética? A própria poesia depois de ter sido definida, durante muito tempo, como arte do verso, acabou sendo reconhecida, também, como arte da imagem. O poema não apenas carrega as significações que atuam sobre as palavras reunidas por ele, com também as organiza num assunto, numa cena, no sentido pictórico de ambos os termos. (Cf.: Dubois, 1980, 80-81)
Mas, um dos pontos mais importantes tanto na criação poética quanto na fotográfica é o da recordação, pois as imagens construídas por ambas têm o poder de fazer-nos ir a um tempo que não é mais o nosso, de rever os que não estão mais conosco, de visualizar aquilo que não existe mais:

A imagem reproduz o momento da percepção e força o leitor a suscitar dentro de si o objeto um dia percebido. O verso, a frase-ritmo, evoca, ressuscita, desperta, recria ou, como dizia Machado: não representa, mas apresenta. Recria, revive nossa experiência do real. Não vale a pena assinalar que essas ressurreições não são somente as de nossa experiência cotidiana, mas as de nossa vida mais obscura e remota. O poema nos faz recordar o que esquecemos: o que somos realmente. (Paz, 2003: 46)

Assim, fotografia e poesia fazem ressurgir aquele presente que estava ausente tanto de nosso inconsciente quanto no da sociedade, o mesmo que, algumas vezes, queria permanecer oculto, apesar de sabermos que está ali, na memória, mas num passe da mágica poética e fotográfica, é despertada e ressurge das cinzas, fazendo com que aquele presente ressurja novamente. No entanto, esse ressurgir não se dá de forma clara e ordenada, é construído.

O compromisso da poesia com o concreto e com a autonomia da linguagem é paralelo ao compromisso da fotografia com a visão pura. Ambos implicam descontinuidade, formas desarticuladas e unidades compensatórias: arrancar as coisas ao seu contexto (para que possam ser vistas de um modo novo), reuni-las elipticamente de acordo com as exigências imperiosas e por vezes arbitrárias da subjetividade. (Sontag, 1986: 90-91)

É isso o que acontece quando nos deparamos com a fotografia de Alexander Gardner (foto 1), em que vemos Lewis Payne, à espera de seu enforcamento:

A foto é bela , o jovem também: trata-se do studium. Mas o punctum é: ele vai morrer. Leio ao mesmo tempo: isso será e isso foi; observo com horror um futuro anterior cuja aposta é a morte. Ao me dar o passado absoluto da pose, a fotografia me diz a morte no futuro. (Barthes, 1984: 142)

Pelo fato de ser bela e de ele ser belo, essa fotografia foge ao lugar-comum daquilo que cremos ser um assassino, com isso somos desviados de seu intento – o de servir de exemplo para que outros não cometessem o mesmo crime, de mostrar o monstro a todos –, além disso podemos ser levados a pensar: como um jovem bonito assim poderia ter tentado tirar a vida a alguém? Que fatos concorreram para que praticasse atos desprezíveis? Ou ainda irmos mais fundo: não, ele não deve ter feito nada disso, basta olhar para dentro de seus olhos... Temos, no entanto, de subjugar nossa subjetividade, desviar nosso olhar dos olhos de Lewis e entrar na temporalidade/realidade que a fotografia retoma: ele vai morrer, mas já está morto e, a despeito de tudo o que dissermos ou especularmos, o ato já se concretizou, mesmo que tenhamos saído dos limites estabelecidos pela moldura.

Formação do acervo iconofotológico


Quando propomos fazer uma análise das imagens evocadas por poemas que abrangem os séculos XVI, XVII e XVIII, sempre vem a indagação: até que ponto podemos, ou não, utilizar uma imagem distinta daquela empregada por aqueles autores – a partir da ótica do século XXI –, já que não dispomos mais das preceptivas retóricas daqueles autores? É isso o que pretendemos discorrer com este artigo ao tentar apresentar como se dá a recepção des imagens poéticas extemporâneas em nossos dias, pois querer que as mesmas sejam decodificadas a partir do referencial daquele momento resultaria – para a maioria dos leitores de hoje – em anacronismo, afinal não dispomos mais daquelas determinações.
Acreditamos que a recepção imagética das imagens formadas por aqueles poetas se dá, hoje, por meio do acervo fotográfico que criamos ao longo de nossas vidas, à semelhança de um álbum virtual dos acontecimentos que nos cercam, constituído por anos de bombardeamento de imagens técnicas via mídia. É como se esse corpus virtual e latente ficasse à espera de um estímulo externo – como uma imagem evocada num poema, por exemplo – para que pudesse reaparecer, pois

Diante de uma experiência sensível (uma determinada variação do regime de luz, a percepção de um cheiro, o desenho formado por uma mancha de leite), atingimos um fragmento do passado que julgávamos esquecido ou perdido. (Guimarães, 1997, 180)

A fotografia, portanto, passa a ter a importância de monumento, enquanto reminiscência do que foi, pois para nós, sua função é a de tornar sempre claro, frente a nossos olhos, determinado período, acontecimento, pessoa ou pessoas. É como se nos dissesse: você não pode esquecer isso! À semelhança de um totem – o monumento que religaria os dois extremos temporais de um grupo social, tornando-se uma ponte entre o presente e o passado –, não deixa as lembranças por ele evocadas serem destruídas. Por ser rocha, o totem duraria o suficiente para que aquelas pessoas ou fatos dos quais não se queria esquecer fossem lembrados por gerações, até que se extinguissem todas as lembranças do motivo primeiro que o originou; quando, finalmente, ninguém mais saberá quais pessoas ou fatos os autores do monumento quiseram perpetuar. Dessa forma, uma das particularidades do monumento é a ideia de perpetuação, por isso

As sociedades antigas procuravam fazer com que a lembrança, substituto da vida, fosse eterna e que pelo menos a coisa que falasse da Morte fosse imortal: era o Monumento. Mas ao fazer da fotografia, mortal, o testemunho geral e como que natural ‘daquilo que foi’, a sociedade moderna renunciou ao Monumento (...) a Fotografia é um testemunho seguro, mas fugaz (...). (Barthes, 1984, 139)

Perpetuar um acontecimento também é uma forma de evitar que ele se repita se for contraproducente; ou que será rememorado, se benéfico; daí a importância de seu registro, seja fotográfico ou mesmo poético. A fotografia, portanto, passa a ser o combustível que reaviva a chama não só de nossa memória, como também de nossas emoções, pois, apesar de sua fugacidade – daí sua dessemelhança em relação ao totem, cuja aparência dá testemunho de perenidade (enquanto existir) –, também existirá com ela a eternização de uma determinada realidade. O tempo pode passar, certas pessoas podem não ter vivenciado a cena retratada, mas, à vista de uma fotografia, há a extemporização do momento, semelhante a uma viagem no tempo, por meio das imagens por ela evocadas. Além disso, pode não só nos revelar aquilo que estava na cena, como o que havia, provavelmente, por trás da mesma. Mesmo as mais corriqueiras atitudes passam a ser dignas de crédito quando fotografadas, mesmo a posteriori, ou seja, o mais banal dos acontecimentos reveste-se de grande importância , como se tudo girasse em torno de acontecimentos interessantes dignos de serem fotografados. Quando esses, porém, se extinguirem com o tempo, a fotografia estará lá, conferindo a eles não só importância como também imortalidade. (Cf.: Sontag, 1986: 21)
Justamente esse fato de que tudo vale a pena fotografar reforça seu aspecto trivial e fugaz, de algo sem importância, principalmente em uma sociedade repleta de imagens sem deferência. Todavia, essa falta de importância é uma demonstração de sua constante presentificação, ou seja, retrata o momento em que se está inserido e que corresponde ao presente retratado na fotografia: ambos se imiscuem num abraço envolvente, quando aquele presente passa a fazer parte deste presente, mesmo em seus aspectos mais rotineiros.
Essa relação, porém, mudará com o passar dos anos, pois tal foto, ao ser visualizada certo tempo depois, não mostrará mais a banalidade de um instante congelado, mas a totalidade de um momento que não estará exposto naquele papel-imagem, mas será reativado na memória de quem passou por aquele instante, ou mesmo por quem sempre ouviu falar dele; algo próximo da tradição oral de um povo, repetidas de geração em geração, ao lado do fogo. Quantas vezes pessoas ouviram histórias de um momento qualquer que fora retratado numa foto e ao vê-la, in loco, são capazes de enxergar além de seu enquadramento, sem ter estado lá, à semelhança de um déjà vu? Dessa forma, a fotografia impele-nos ao saudosismo, à rememoração, à busca de um elo perdido, à nostalgia:

A fotografia é uma arte elegíaca, uma arte crepuscular. A maior parte dos temas fotografados são, pelo simples fato de serem fotografados, afetados pelo pathos. Um tema feio ou grotesco pode ser comovente por ter sido dignificado pela atenção do fotógrafo. Um tema belo pode provocar sentimentos de compaixão por ter envelhecido, perdido importância ou já não existir. (ibidem: 24)

Semelhante ao valor testemunhal evocado pela fotografia e seu propósito de perpetuar-se no tempo como um monumento, temos a linguagem poética. Esta, diferentemente da linguagem comum, tem como atributo próprio o fato de durar (Cf. Levin, 1975: 103), enquanto aquela – centrada na função referencial – não se mantém, visto que, a partir do momento que compreendemos o que diz, é substituída em nossas mentes pelo que significou (ibidem: 103), torna-se, portanto, sem valor e é apagada. Na poesia, tanto a forma quanto sua disposição no papel permanecem, já que as mensagens poéticas desfrutam de uma permanência que a linguagem comum não possui. Não se quer dizer com isso que um poema possa perdurar por gerações ou séculos enquanto realidade palpável (representado pelo próprio papel), mas pelo fato de sua permanência – tanto na mente individual, quanto na coletiva – prescindir, inclusive, de elementos concretos, à semelhança da Idade Média em relação aos jograis, menestréis e trovadores.
Assim sendo, o poema também teria uma função de monumento, religaria o presente ao passado e, sendo memorável, perpetuar-se-ia na memória, na recordação e na lembrança da posteridade. Dessa forma, tanto o poema quanto a fotografia poderiam ser indicadores de autenticidade de um tempo que já está distante do nosso e, à semelhança da Bíblia, ser de outro modo comunicadores históricos em meio à função retórica. Quantos não empregaram suas vidas para tentar provar que as imagens bíblicas eram uma cópia fidedigna da realidade passada? Entretanto, esses haviam se esquecido de que o Livro não é meramente histórico, mas poético e que nem todos seus poemas são, segundo nossa ideia, fotográficos.
Um dos liames, por exemplo, que aproxima a fotografia da arte seiscentista e que suscitara, inclusive, minha Tese de doutoramento é a edificação da morte que se encontra nas duas. Contudo, a morte não em seu sentido de término, mas como perpetuação, uma constante ressurreição daquilo que foi fotografado ou daquilo que foi descrito num poema. Ambas as imagens detêm o tempo, quando a temporalidade do objeto separa-se daquela do sujeito (Virilio, apud Guimarães, 1997: 48), ou seja, imortaliza o que é mortal, apesar de serem memento mori. Fotografar, por exemplo, é participar na mortalidade, vulnerabilidade e mutabilidade de uma outra pessoa ou objeto, testemunhando a inexorável dissolução do tempo, precisamente por selecionar e fixar um determinado momento. (Cf.: Sontag, 1986: 24)
Ao selecionar esse momento qualquer, é como se disséssemos a ele: tenha vida eterna! Viva mais do que seu próprio referente, de sua própria emanação primeira. Eis porque o ato de fotografar é dedicar-se à captura da morte:

Pois é preciso que a Morte, em uma sociedade, esteja em algum lugar; se não está mais (ou está menos) no religioso, deve estar em outra parte: talvez nessa imagem que produz a Morte ao querer conservar a vida. Contemporânea do recuo dos ritos, a Fotografia corresponderia talvez à intrusão, em nossa sociedade moderna, de uma Morte assimbólica, fora da religião, fora do ritual, espécie de brusco mergulho na Morte literal. A Vida/a Morte: o paradigma reduz-se a um simples disparo, o que separa a pose inicial do papel final. (Barthes, 1984: 138)

Leitura iconofotológica e o poema fotográfico

Vê-se, portanto, com o advento da fotografia, a renúncia do monumento utilizados pelos antigos para celebrar a morte, ou ainda toda uma visão iconológica cujo tema é exatamente o mesmo, mas os recursos são totalmente diversos. Com a fotografia a morte existe (e reside) a partir do presente perpétuo; nos Seiscentos, por outro lado, é retratada exatamente pelo seu futuro, ou seja, a descarnação total do ser: o esqueleto.

Se o século XV havia mostrado uma verdadeira obsessão pela morte, o XVII (...) supera-o e consegue dar uma versão ainda mais temível e impressionante: se na Idade Média a morte é, na arte e no pensamento, uma ideia teológica, e no espetáculo popular das danças macabras se apresenta com um caráter didático geral e impessoal, agora é tema de uma experiência que afeta a cada um em particular e causa uma dolorosa convulsão. (Maravall, 1997: 268)

Quando Maravall fala em espetáculo, tais palavras podem soar como metafóricas, visto que a tópica do palco do mundo também encontra eco no momento derradeiro, no entanto, não é o que se via nos Seiscentos, segundo Flemming:

Selbst in den letzten Stunden fühlt das Ich sich nicht allein; stets stehen die anderen als Zuschauer herum, nach deren Beifall man verlangt. So endet das Leben, wie es überhaupt empfunden und geführt wurde: als Schauspiel. Selbst noch im Tode, ja noch drüber hinaus im Grabstein. (Flemming, 1937: 26)

Tanto a fotografia quanto a poesia dos Seiscentos acabam tratando, mesmo que não diretamente, do memento mori: uma porque perpetualiza o momento (embalsamando-o), outra porque essa própria tópica já faz parte de sua própria Weltanschauung. Assim, na fotografia, é como se olhássemos em um espelho e, de um lado, víssemos refletido nosso presente; e de outro, concomitantemente, o futuro e o passado. Evidentemente, não nos é permitido ver o futuro, dessa forma, temos de restringir esse olhar para o presente, mas enquanto realidade que já passou, pois o nosso é um período posterior àquele verificado e concretizado pela fotografia. Por outro lado, pode-se considerar a poesia como um reflexo especular tanto da linguagem humana – por apresentar os níveis fônico e semântico –; quanto da alma humana – por refletir aquilo de que o homem está impregnado: a totalidade de seu ser, seus pensamentos e emoções.
Se se pode, portanto, considerar a poesia como portadora de reflexo especular, que dizer, então, da fotografia que há muito não só reflete o que está diante de uma câmera, como também tem o poder de fixá-lo? Isso já seria suficiente para que pudéssemos começar a cotejar a poesia com a fotografia em relação à especularidade de sua reprodução imagética, afinal a foto além de aprisionar a imagem, que tem diante de si, também revela as minúcias que se querem (ou se queriam) manter escondidas.
Há, além disso, o fato de ambas, por sua própria estrutura e emprego, manterem-se perenes, eternizadas por meio do papel, algo extremamente frágil e perecível. Que é o homem senão a totalidade de um ser perecível – seu corpo – juntamente com um imortal – sua alma? Mesmo que não exista Deus, nem religião, nem uma alma eterna, o homem já seria eterno, por poder perpetuar-se por meio de sua obra, de sua τέχυη e de seu λόγος e de ter consciência disso.
Vê-se, portanto, que o liame que une a poesia e a fotografia não é tão tênue a ponto de romper-se tão facilmente quanto poderia parecer inicialmente. Não é possível dissociar λόγος, είκών e τέχυη, afinal todos fazem parte de uma trindade constitutiva do espírito do homem que o torna um ser diferente dos outros por meio da ratio que lhe é inerente.
Diante disso, não se constituiria um contrassenso chamar um poema de fotográfico, nem uma fotografia de poética, como propomos. Assim, poderíamos chamar de fotográfico um poema, cujo poeta não tenha tido ele mesmo a influência direta da fotografia, mas aquele cujo leitor tenha sofrido a influência dela, já que são as imagens verbais contidas nessa estrutura linguística que revelam, justamente, as imagens fotográficas que permeiam nossa memória, o que chamo de acervo iconofotológico. Esse também nos faz refletir a respeito da própria obra poética e do mundo em que ela está inserida; quando, via contemplação imagética – que não passa de uma atividade orientada para a captura da significação, já que esta não é imanente a obra, mas dependente não de uma única, mas de várias leituras – entendida como um conjunto de processos de decodificação, de associação com uma série indefinida de mensagens, lembranças, afetos, multiplicidades intensivas ou qualidade existenciais (Lévy, apud ALMEIDA, 2006: 89), abre a chave da sígnificação por meio da substituição de uma imagem lógica por outra fotográfica, latente em nossa memória, à espera de um estímulo que a faça sair de sua letargia.
É inconteste que esse start em nossa memória não se dê somente via imagens visuais, mas também por meio de imagens acústicas – quando determinada música nos faz lembrar de um momento perdido no tempo, mas que está guardado em nosssa inconsciência – ou palativo-olfativas – quando um perfume, a fragrância de uma flor, o cheiro de terra molhada, ou a essência de um determinado tempero produzem-nos efeito semelhante.
Para o neurocientista Jean-Pierre Changeux, por exemplo, tanto na contemplação como no que se convencionou chamar prazer estético intervêm processos distintos que vão da a) pura sensação – apreensão da superfície colorida e das formas –; passando pela b) percepção – atividade de reconhecimento de formas e figuras –, que despertará, em ressonância com as imagens internas armazenadas pelo espectador (a memória), uma síntese significatica da obra (compreensão). (Cf.: ibidem: 89) Assim, contemplação e prazer estético implicam em operações e faculdades distintas, recrutando, neurologicamente, tanto estados de atividade do sistema límbico (o cérebro das emoções) como re¬presentações mais sintéticas do córtex frontal (relacionado ao raciocínio e à razão).
A contemplação, portanto, seria orientada para capturar sentidos sígnicos que não são imanentes à obra , mas que pressupõem a utilização de nosso acervo iconofotológico, de onde retiraríamos imagens que preencheriam as que vão se formando durante a leitura que fazemos por meio do λόγος (poemas ou romances, por exemplo), a fim de que possamos visualizar o todo proposto pelo autor. É evidente que esse todo será lido de forma subjetiva e nunca corresponderá àquilo que o mesmo concebera originalmente.
Quem lê, despretensiosa e mecanicamente, um texto poético qualquer, sem nenhuma dedicação para apreendê-lo, poderá não ter aguçada sua memória fotográfica , a menos que alguma imagem evocada punja-o e retire-o do texto – servindo-lhe de punctum – e leve-o a procurar seu correspondente em seu acervo iconofotológico; mas, para isso, a imagem precisa ser retirada do meio em que está inserida ou disposta, por meio da supressão daquelas que lhe são contíguas. (Cf. Bergson, 1999: 24) É nesse momento que ocorre a ativação da memória, a ressurreição de um passado que não existe mais, visto que já estava morto: Desaparecidas a terra de origem e sua língua, é a narração que se torna ela própria uma terra que faz renascer (Guimarães, 1997: 150), assim os últimos restos, remanescentes e cacos de algo que estava irrecuperavelmente perdido e não poderia mais ser recomposto por nenhum artifício do mundo. (Handke, apud Guimarães: 150)
Tais cacos, portanto, podem ressurgir, mas de forma sempre individual, por meio da literatura, por meio de poemas fotográficos. Esses são aqueles cujas imagens têm trânsito em diversos tempos, ou seja, aparentemente não demonstram ser somente inerentes a um determinado período. No entanto, como há uma mudança do signo linguístico ao longo dos anos, aquilo que parecia óbvio num determinado momento, não será mais em outro; dessa forma, o que parecia diacronia, não passa de uma ilusão sincrônica.
A leitura de poemas fotográficos, portanto, sempre é iconofotológica, visto que é efetuada a partir da sincronia, desde que as palavras/imagens empregadas pelo poeta sejam de livre acesso temporal, ou seja, perfeitamente perceptíveis em qualquer tempo, por isso os poemas que indicam catástrofes e guerras – inerentes ao todo humano – normalmente são fotográficos.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Júlia de. “Entre texto e imagem: título e quadro”. In Alceu, v. 6, n. 12, Rio de Janeiro, 28-41, 2006.
BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.
BENJAMIM, Walter. Sociologia (org. Flávio R. Kothe) 2ª ed. São Paulo, Ática, 1991.
BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo, Martins Fontes, 1999.
BONFIGLIOLI, Cristina P. “Representação e pensamento: a visibilidade dependente”, in Compós: Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, 2008 (retirado de http://www.compos.org.br/data/biblioteca_296.pdf)
BRANDÃO, Antônio Jackson S. Iconofotologia do Barroco alemão. Tese de doutorado apresentada à Universidade de São Paulo, 2008.
___________ . “Sistemas de representação na arte barroca”. In Revista Eutomia, UFPE, Recife. 2008.
DUBOIS, J. et alii. Retórica geral. São Paulo, Cultrix-Edusp, 1974.
__________. Retórica da poesia: leitura linear, leitura tabular. Cultrix-Edusp, 1980.
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas, Papirus, 2006.
FLEMMING, Willi. Deutsche Kultur im Zeitalter des Barock. Potsdam, Akademische Verlagsgesellschafte Athenaion, 1937.
FLUSSER, Vilém. Hacia una filosofía de la fotografía. México, Trillas-Sigma, 1990.
GUIMARÃES, César. Imagens da memória: entre o legível e o visível. Belo Horizonte, Fale/UFMG, 1997.
LEVIN, Samuel. Estruturas lingüísticas em poesia. São Paulo, Cultrix, 1975.
MARAVALL, José Antonio. A cultura do Barroco: análise de uma estrutura histórica. São Paulo, 1997.
PAZ, Octavio. Signos em rotação. São Paulo, Perspectiva, 1976.
SONTAG, Susan. Ensaios sobre fotografia. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1986.