Antônio Jackson de Souza Brandão
RESUMO – O artigo abordará alguns pressupostos acerca da imagem a partir da busca por realismo na pintura renascentista e sua concretização na fotografia. Para isso é necessário levantar alguns conceitos como visão imagética na Idade Média e sua transição para a do Renascimento e a autoafirmação da pintura como uma arte liberal. Além disso, discutiremos também o papel desempenhado pela ciência na efetivação e emprego da câmara escura tanto na arte quanto na formação da imagem fotográfica.
Palavras-chave: Fotografia, Idade Média, Renascimento, luz, imagem.
ABSTRACT – The article will approach some information concerning the image from the search for realism in the Renaissance painting and its concretion in the photograph. For this, it is necessary to list some concepts as imagery vision in the Middle Ages and its transition for Renaissance and the establishment of the painting as a liberal art. Besides, we will also argue the executed role by the science in the result and role of the obscura camera both in art as in the formation of the photographic image.
Keywords: Photograph, Middle Ages, Renaissance, light, imagery.
INTRODUÇÃO
Há quase dois séculos, a fotografia revolucionou aquilo que conhecemos por imagem e ela está cada vez mais próxima e acessível a todos. Esse seu poder de estar em todos os lugares, sua ubiquidade, força-nos a acreditar que isso só tenha sido possível devido a nossa técnica hodierna.
Esquecemo-nos, no entanto, de que esse processo é bem mais antigo, visto que tem origem em outros procedimentos utilizados pelo homem há milênios, como a utilização da câmara escura. Além disso, a própria palavra técnica pode nos induzir a esse vislumbramento, porém, etimologicamente, a palavra vem do termo τέχυη (téchne), cuja acepção para os gregos era arte manual, habilidade (manual ou em coisas do espírito), conhecimento teórico, método, artifício, obra artística, tratado sobre arte. Técnica e arte, portanto, não são excludentes, mas fazem parte de um processo comum, imiscuem-se.
Quando, por exemplo, nos deparamos com uma obra pictórica do Renascimento , sabemos que esse período rompeu com a Weltanschauung medieval, revolucionou, inclusive, nossa percepção do mundo, abrindo-nos a percepção unilocular do mundo que nos envolve. Muitos, entretanto se esquecem de que em tal modelo figurativo utilizava-se maciçamente da técnica (segundo nossa acepção), visto que muitos de seus expoentes valiam-se de aparatos para realizar seu ofício como o intersector ou a câmara escura.
Esta será, inclusive, o primeiro passo para o posterior aparecimento da máquina fotográfica. Foi justamente seu desenvolvimento nos séculos XVI ao XIX – abertura do orifício, utilização de lentes, emprego do diafragma – que deixaria a primeira etapa da fotografia pronta: o domínio e o conhecimento da luz possibilitados pela física, abrindo caminhos para o posterior aprimoramento da etapa química do processo fotográfico.
Se o homem do século XIX via na fotografia uma cópia fidedigna da natureza, no Renascimento buscava-se não só o retratar o real, mas criar esse próprio real, por meio de uma analogua absoluta. Tal processo durou quatro séculos, mas foi rompido pela fotografia e sua inquestionável realidade que abriu campo para que as artes pictórica se voltassem para seu próprio escopo.
Nós, porém ao chegarmos ao Futuro e vislumbrarmos a fotografia digital e todas as suas possiblidades de manipulação, não conseguimos mais acreditar simplesmente na veracidade fotográfica: isso é real ou é Photoshop? Sim, vivemos uma nova revolução, um novo Renascimento, mas a fotografia ainda está mais viva do que nunca.
FAÇA-SE A LUZ
Deus disse: Faça-se a luz" E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas. Deus chamou à luz dia, e às trevas noite (Gn 1,3-4 )
Benjamim falou-nos do pensamento que, incansável, não para de perseguir as coisas e, nessa perseguição, considera seu objeto sob os mais variados ângulos possíveis. À semelhança de um mosaico (Cf. BENJAMIM, 1984, p. 50) que, para ser vislumbrado, necessita da contemplação não da parte, a qual sequer se relaciona intrinsecamente e que está em contiguidade, mas do todo. Este não passa da alternância entre o fragmento e o vazio do encaixe. Ambos, porém, não são excludentes, completam-se na obra, assim como a luz e a escuridão que, em seu ciclo, é o princípio do agir, do pensamento, da arte, da vida, enfim de tudo,
A obra universal da LUZ é a morada de todas as coisas. Trata-se de uma ENERGEIA, uma operação ontológica que põe tudo em obra, por constituir em tudo o que, antes de ser, já sempre era ser (...), Boécio traduziu para o latim uma expressão corrente na Idade Média: quod quid erat esse. (LEÃO, 2006, p. 64.)
A luz para os gregos possuía a qualidade de encetar toda a criação; para nós, a mesma luz, via fotografia, abriu a oportunidade não só de conhecermos essa mesma criação como também irmos além, de penetrarmos em suas minúcias, em seus detalhes, permitindo-nos jogar com a extensão das coisas: aumentando o diminuto ou diminuindo o avantajado, favorecendo o que chamamos de prazer estético , oferecido pela técnica fotográfica que nos permitiu vislumbrar
mundos imagéticos que se escondem no pequeno detalhe, suficientemente significativos e ocultos para encontrarem abrigo nos estados de devaneio, mas tendo agora se tornado grandes e formuláveis, capazes de fazer com que a diferença entre técnica e magia seja visível como uma variável de natureza histórica. (BENJAMIM, 1991, p. 222)
Distanciando-nos da peça do mosaico, conseguimos vê-lo na totalidade. A fotografia fez, exatamente, o contrário, tornou possível conhecer o outro lado das coisas por sua aproximação. É como se, de repente, nos fosse possível conhecer o outro lado da lua, o mesmo que, devido à ausência de luz, ainda desconhecemos. No entanto, para que o sonho de perpassar não só pequenos mundos – antes desconhecidos, já que não percebidos – como também a nós próprios – nossas particularidades, nossa face oculta que teimamos em não nos revelar – fosse possível, foi necessário aprender a dominar a luz; à diferença do fogo dado por Prometeu, agora essa foi uma conquista do próprio homo sapiens com auxílio de suas τέχυαι (téchnai).
Por meio delas e sujeitando a luz (como se Prometeu também a tivesse entregado), o homem criou o processo fotográfico (φωτός – luz; γραφή – escrita, linha, processo), concretizando um sonho perseguido há muito pela humanidade: o de poder reproduzir e fixar aquilo que o olho vê na natureza, cujo início remonta à própria humanidade. Quando o homem primitivo, utilizando-se da luz de tochas nas cavernas escuras, decalcava suas mãos nas paredes à semelhança das sombras produzidas pela luz, é como se antevisse a criação de fotogramas (Cf.: DUBOIS, 2006, pp. 67-71); ou mesmo no início da pintura que, segundo Plínio, tem origem na fixação do contorno humano também a partir de sua sombra .
Pode-se compreender porque, apesar de o processo fotográfico só ter sido possível em sua totalidade na primeira metade do século XIX, a fotografia
existierte in Gestalt von Plänen und Projekten, nicht zuletzt aber auch von Phantasien, Träumen und Mythen. Die Pläne und Projekte gehören ebenso wie die Vorarbeiten und Vorstufen zur Erfindung der Photographie in den Bereich der Technik- und Wissenschaftsgeschichte und interessieren den Literaturwissenschaftler nur mittelbar. Aber für Träume, Phantasien und Mythen ist die Literatur und ihre Wissenschaft zuständig.
Lange bevor sich die Physiker und Chemiker der Idee der Photographie bemächtigten, begegnen wir dieser in literarischen Zeugnissen. (KOPPEN, 1987, pp. 15-16)
[tradução livre: existia na forma de planos e projetos, e para não esquecer também em fantasias, sonhos e mitos. Os planos e projetos faziam parte inclusive da preparação e das etapas iniciais em direção à invenção da fotografia no campo da história da técnica e da ciência, e interessavam, só indiretamente, à ciência literária. Mas a ciência literária é competente em sonhos, fantasias e mitos. Muito antes de os físicos e químicos apossarem-se da idéia da fotografia, nós a conhecíamos nos testemunhos literários.]
Exemplo desse indício literário acerca da reprodutibilidade imagética já havia sido preconizado no mundo mítico grego a partir da história de Narciso que, segundo Koppen, é visto hoje somente sob o prisma de uma interpretação psicológica e psicanalítica, mas que antes dessas leituras permitia uma associação à imagem especular, afinal o espelho é a primeira reprodução imagética da realidade. (Cf. ibidem, pp. 16-17)
Deve-se considerar quando se fala em anseio da humanidade, que o surgimento da fotografia representou um conjunto de fatores e de conhecimentos esparsos adquiridos no correr dos séculos, em áreas distintas do conhecimento: física, química, filosofia e artes, portanto sua invenção
(...) não pode ser confundida [simplesmente] com a descoberta das placas sensíveis à luz e por isso a data de 1826 (quando Nièpce registra ou fixa a imagem na chapa fotográfica pela primeira vez) é arbitrária para designar o nascimento do processo. A fixação fotoquímica dos sinais de luz é apenas uma das técnicas constitutivas da fotografia; a câmara fotográfica, porém, já estava inventada desde o Renascimento, quando proliferou sob a forma de aparelhos construídos sob o princípio da câmara obscura (...). (MACHADO, 1984, p. 30)
É justamente no Renascimento, período em que grandes transformações sócioeconômicas ocorreram, que a arte pictórica procurou romper com a teoria dogmática que relegava a pintura a um plano secundário – às artes mecânicas (ars mechanicae) – em relação às chamadas artes liberais (ars liberae).
Tal conceituação remonta ao primeiro século de nossa era, quando as chamadas artes liberais designavam aquelas dignas dos homens livres em contraposição às mecânicas, próprias do trabalhador manual. O filósofo romano Varrão havia classificado as artes liberais em nove: gramática, retórica, lógica, aritmética, geometria, astronomia, música, arquitetura e medicina. No séc. V d.C., Marciano Capela em seu As Núpcias de Mercúrio com a Filologia reduzia-as a sete: gramática, retórica, lógica, aritmética, geometria, astronomia e música, eliminando a arquitetura e a medicina. Dessa forma, a pintura, a escultura e a arquitetura (só para citar as que consideramos arte) foram relegadas a um plano inferior por séculos. Finalmente, no século VI, Isidoro em seu Etymologiae (550) e Casiodro com seu Institutiones divinarum et humanorum lectionum (562), dividiram-nas em duas categorias: o trivium e o quadrivium, este corresponderia a aritmética, geometria, astronomia e música, aquele a gramática, dialética e retórica. Havia se instaurado, de modo incipiente, a divisão que chegaria até nós entre as ciências matemáticas e as filosóficas, ou seja, a distinção que se faria, posteriormente, entre as artes (τέχυη para os gregos) que visavam à arte (ao belo) e à técnica (utilidade).
Mais do que adentrar no mundo das artes liberais, a virtù visiva passaria a ocupar o lugar que pertencia ao ouvido: enquanto no medievo Deus falava ao homem pelo ouvido , agora Deus falaria por meio de imagens.
Essa mudança de enfoque deveu-se, sobretudo, ao avanço do campo pictórico e à adequação do fazer artístico às ciências, renovando não só a arte medieval como também modificando seu ponto de vista em relação ao emprego imagético. Por isso, os teóricos do Renascimento, como Alberti, enfatizavam a necessidade de centralizar a narrativa pictórica como princípio básico do perspectivismo – na arte medieval aceitava-se uma seqüência narrativa dentro de um mesmo quadro (fig. 1):
Alberti destacou a perfeição do perspectivismo como método infalível para representar o visível. A identidade entre o visível e o verdadeiro refletia perfeitamente o espírito científico renascentista. A pintura deve formar-se como uma “janela” onde o espaço é enquadrado segundo princípios quantitativos que diminuem a função discursiva em favor da autonomia do figurativo. Assim, a perspectiva se estabelece na confiança numa posição escópica estável do sujeito contemplador (...). (SCHØLLHAMMER, 2001, p. 35)
A obra de arte renascentista se fundamentará na perspectiva unilocular, ou seja, a partir de um único ponto de vista, de um único ponto de fuga. É esse enfoque que permanecerá na sociedade ocidental durante séculos e também influirá na própria fotografia (fig. 2).
Por outro lado, a obsessão criada pelo Renascimento em torno da concepção e do efeito de realismo imagético vai além de uma mera representação:
Não se tratava apenas (...) de buscar recursos para representar o “real”, no sentido de que todo e qualquer sistema de signos busca de alguma forma se referir a algo “real”: a estratégia renascentista visava suprimir – ou pelo menos reprimir – a própria representação, na medida em que esse analogon buscado deveria ter espessura e densidade suficientes para se fazer passar pelo próprio “real”.
Na verdade, mais que analogia, o que a imagem figurativa buscou esse tempo todo foi uma homologia absoluta, a identidade perfeita entre o signo e o designado. (MACHADO, op. cit. p. 27)
Tal concepção era improvável no mundo medieval, cujas obras planas se baseavam, entre outros aspectos, no hieratismo, na frontalidade, na isocefalia, na isodactilia, na falta de perspectiva e de profundidade (fig. 3). Prevalecia, naquele momento, não só a interpretação metafísica da estrutura do corpo humano (PANOFSKY, 2001, p. 128) , como também as especulações cosmológicas eram centradas em correspondências fixadas por Deus e ordenadas entre o homem e o universo. As proporções do ser humano, por exemplo, eram explicadas pelo plano harmonioso da criação divina. (Cf.: ibidem, p.129)
A arte medieval, portanto, era pura simbologia, expressando a visão de um mundo teocrático e mágico; na renascentista, há um outro ponto de vista: por meio das leis matemáticas da perspectiva linear, o plano bidimensional da pintura adquire a ilusão de um espaço tridimensional a partir de um único ponto de fuga. Assim, a introdução dessa terceira dimensão é que permitia ver a cena simulando distância, volume e massa. Busca-se criar um efeito de realidade vista pelos olhos, um quase naturalismo, não no sentido de um gênero, ou de um momento literário, mas no de busca da perfeição daquilo que é imitado:
basado en el profundo deseo humano de una reproducción objetiva del entorno en su totalidad o en sus aspectos parciales. Así, por tanto, el naturalista no puede ‘estilizar’ (...) apartarse de la visión natural por medio de un método configurador, una expresión subjetiva del temperamento o un acto de abstracción idealizador. Por todo ello, desde siempre se ha puesto en duda que pueda existir un ‘arte’ naturalista. (STELZER, 1981, p. 16)
Antes de esse naturalismo ter sido materializado pela fotografia – considerada num primeiro momento a mais mimética das artes –, perpassando, efetivamente, a imaginação daqueles teóricos, e concretizando-se por meio da τέχυη non manufacta, a própria fotografia vivia embrionária no Renascimento. Dessa forma, quando a fotografia se materializa, cinco séculos de busca pela perfeição estética concretizaram-se e a própria fotografia recebe como herança grande parte do universo virtual criado pela própria Renascença (Cf.: GRIECO, 2006, p. 105). A partir de então, a arte pictórica estaria liberada para trilhar outros caminhos, como a quebra do perspectivismo, do realismo, da linearidade da luz. Em suma, a fotografia
libertou as artes plásticas de sua obsessão por semelhança. Pois a pintura esforçava-se, no fundo em vão, em nos iludir, e essa ilusão bastava à arte (...) [agora] a fotografia e o cinema (...) satisfazem definitivamente e em sua própria essência a obsessão do realismo. (Bazin, apud Dubois, 2006, p. 31)
Falar em fotografia é pensar em luz, por isso é necessário não só conhecer algumas de suas propriedades físicas − propagação, reflexão, refração e absorção −, como também certas propriedades ópticas, além do emprego da câmara escura para, a partir desses elementos, ser possível vislumbrar o avanço tecnológico que culminou com a fotografia analógica e digital .
A luz é uma forma de energia eletromagnética radiante e pode ser transmitida de duas formas: ou em linha reta − como o laser − ou de forma ondulatória − quando há um simples transporte de energia, não de matéria, já que para sua transmissão não é necessário um meio material para seu deslocamento. Assim, se a luz solar incide sobre um determinado corpo, dependendo do comprimento de sua onda, pode ser que algumas ondas sejam absorvidas, refratadas e refletidas (fig. 4), principalmente se essa superfície for lisa como o vidro ou a água.
É-nos importante tal abordagem, não só para compreendermos a logicidade da luz e sua captação pelo processo fotográfico, como também para apropriarmo-nos desses conceitos físicos – refração e reflexão –, seguindo o conceito do linguista russo Valentin N. Volochinov (1895-1936). Para este, a realidade material da ideologia são os signos que constituem a base de todo sistema de representação, porém
essa “representação” das coisas se dá de forma dupla e contraditória: os signos, ao mesmo tempo, refletem e refratam a realidade visada pela representação.(...) Resulta daí que o fenômeno da refração nos impede de obter uma reprodução “fiel” dos sinais luminosos, já que ele os “deforma” ou os “transfigura” de acordo com a natureza do material cristalino interposto em seu percurso. (...) Mas por que o signo modifica? Exatamente porque ele não é uma entidade autônoma, que “aponta para”, ou “representa” os fenômenos do mundo com inocência, sem quaisquer mediações. (MACHADO, 1984, pp. 20-21)
A concretude sígnica se dá por meio de alguém e de instrumentos que se interpõem entre a realidade representada e o signo que quer ser sua representação, além dos sinais externos e concretos dessa representação, como o próprio λόγος (lógos):
a palavra é o único signo que pode ser exteriorizado por qualquer indivíduo que tenha pulmões e cordas vocais, já que a produção dos demais sistemas de signos pressupõe a propriedade privada dos meios de produção (as tintas, o pincel, o instrumento musical, a câmera fotográfica, os aparelhos de gravação e toda a demais parafernália mecânico/eletrônica da ideologia industrializada) e a aquisição nem sempre democrática de know-how para operar instrumentos e códigos. (ibidem, pp. 25-26)
Esses signos, porém, ao mediarem o mundo e o λόγος, por exemplo, acabam refratando-se: querem dizer sem, contudo, ser possível fazê-lo plenamentejá que se desviam da linha reta especular que as unia, tornado sua resolução distinta da que se propunha. Algo semelhante a essa situação ocorre, quando tentamos expor nossas sensações – aquelas apreendidas ao nos deparar com situações que fujam de nosso controle –, diante de uma paisagem, diante de algo que consideremos injustiça – a imagem de pessoas famélicas, o sofrimento de uma criança ou de um idoso que chora –, enfim descrever nossas emoções, aquilo que sentimos por algo ou por alguém, mas não conseguimos.
O próprio tempo nos demonstra isso, pois quando determinado signo se perde em seus meandros e tentamos utilizá-lo de modo anacrônico, verifica-se que seu conceito proposto originalmente se refrata, levando-nos a ver aquilo que, efetivamente, não corresponde à representação pretendida: aquilo que visualizamos não é sua totalidade sígnica, mas um desvio, uma refração involuntária, visto que essa não depende de nós para se concretizar.
Se é possível apropriar-nos dos termos refletir e refratar para descrever esses fenômenos linguísticos devido à dinamicidade da linguagem verbal humana, valendo-nos da conceitualização da física, o mesmo se torna inequívoco em relação à fotografia, uma vez que a câmera reflete (por meio de seu pseudoespelho que é a película) e refrata (por meio das objetivas que reorientam o sentido da informação luminosa) o mundo (Cf. Ibidem, p. 26), a partir da propagação retilínea da luz.
É exatamente pelo fato de ser retilínea que se opera a inversão imagética dentro da câmara escura : os raios luminosos, ao penetrarem pelo orifício da câmara, fazem-no em linha reta, por isso a imagem surgida em seu interior fica invertida no anteparo.
Leonardo da Vinci maravilhava-se com a câmara escura a ponto de se perguntar: Que língua poderia explicar tamanha maravilha? Com essa pergunta quase ontológica, da Vinci revela sua opção pelo olhar, pelas artes visuais, pictóricas, em detrimento da arte literária e procura inverter a hierarquia tradicional que estabelecia a precedência da poesia sobre a pintura, argumentando que há, na pintura, uma maior imediaticidade e força dos ‘signos’. (LESSING, 1998, p.12)
Da Vinci considerava a visão, a virtù visiva, o sentido mais nobre, muito acima dos outros, dessa forma a pintura serviria muito mais à μίμησις (mímesis) que a poesia, já que aquela é muito mais próxima da realidade do que esta: a pintura não necessita de interpretação, é direta, objetiva, universal; as palavras, pelo contrário, estão divididas em línguas diferentes, logo necessitam de tradução de uma para outra, não sendo, portanto, universais . Para da Vinci, as palavras podem levar-nos à imaginação, mas esta logo se perde, ao ser substituída por outra; diferente de uma tela, cuja imagem permanece.
A partir dessas considerações, podemos entender seu deslumbramento diante da câmara escura e da grande possibilidade que essa abriria para as artes miméticas, principalmente no auxílio ao desenho e à pintura. Entretanto, ainda seriam necessários alguns aperfeiçoamentos para orientar a passagem dos raios de luz pelo orifício da câmara escura, obtendo-se, dessa maneira, maior nitidez .
Em 1550, Girolamo Cardano (1501-1576) publicou De Subtilitate, em que faz uma descrição da câmara escura bastante conhecida:
Willst du sehen, was auf der Straβe vor sich geht, so muβt du bei hellem Sonnenlicht die Läden deines Fensters schlieβen nachdem du in die Läden eine Linse aus Glas eingesetzt hast. Die durch die Öffnung geworfenen Bilder erscheinen dann auf der gegenüberliegenden Wand, doch sind ihre Farben schwach... (SCHREIBER, 1969, p. 24)
[Tradução livre: Tradução livre: Se tu queres ver o que está ocorrendo na rua, então precisas fechar as venezianas de tua janela num dia de sol claro, depois disso colocas uma lente de vidro nas venezianas. As imagens que são projetadas através do orifício aparecerão na parede oposta, apesar de suas cores serem fracas...]
Cardano teve um papel importante no aprimoramento na câmera escura ao sugerir a utilização de uma lente junto a seu orifício, o que permitiu aumentar sua aplicação; obtinha-se, dessa forma, uma imagem mais clara e nítida. Assim, com a utilização de uma lente biconvexa, seria possível aproveitar ao máximo a luz; e o foco, obtido pela refração dos raios de luz através da lente, convergido para formar uma imagem clara e nítida .
Havia ainda um outro problema surgido para a efetiva utilização da câmara escura pelos artistas: como manter a regularidade do foco? A resposta foi dada por Daniello Barbaro (1514-1570) em seu livro La pratica della prospettiva, de 1568, quando menciona que com a variação do diâmetro do orifício seria possível melhorar a nitidez da imagem.
Wenn ihr sehen wollt, wie die Natur die Gegenstände abbildet, nicht nur den Umriβ des Ganzen und seiner Teile, sondern auch in Farbe, Schatten und Ähnlichkeit, so müβt ihr ein Loch in einen Fensterladen des Raumes machen, in dem ihr beobachten wollt. Das Loch hat die Gröβe eines Brillenglases, das von der Art sein muβ, wie es ein alter Mann braucht, also bikonvex, nicht konkav wie die Gläser der Kurzsichtigen. Das Glas wird in dem Loch befestigt. Alle Fenster und Türen werden geschlossen, damit das Licht nur durch die Lochöffnung einfallen kann, dann hält man gegenüber der Linse, in einem ganz bestimmten Abstand, ein Blatt Papier und sieht so alles scharf abgebildet, was sich auf der Straβe abspielt. Auf dem Blatt werdet ihr dann die Formen sehen, wie sie sind, die Abstufungen der Schatten und Farben, die Bewegungen, die Wolken und die Wellen des Wassers, die fliegenden Vögel und alles das, wenn die Sonne hell und schön scheint, weil im Sonnen Licht die Bilder am deutlichsten werden. Für diesen Versuch sollte man nur die besten Gläser verwenden. Auch muβ das Linsenglas so weit abgedeckt werden, daβ nur eine kleine Öffnung in der Mitte frei bleibt, dann wird das erhaltene Bild noch getreuer mit der Wirklichkeit übereinstimmen. (ibidem, p. 25)
Vemos assim surgir um sistema que, ao aumentar ou diminuir o orifício, tornaria possível uma melhor focalização do objeto que se queria reproduzir. Quanto mais fechado o orifício, maior seria a possibilidade de focalizar dois objetos diferentes pela lente: surge o diafragma (διάφραγμα – barreira).
A partir de então, os avanços da câmara escura não pararam mais: 1573 − o astrônomo e matemático italiano Egnatio Danti sugere a utilização de um espelho côncavo para reinverter a imagem da câmara escura em sua obra La perspecttiva di Euclide; 1580 – o alemão Friedrich Reiner descreve uma câmara escura portátil, apesar de seu livro Optics somente ter sido publicado após sua morte, em 1606; 1620 – o astrônomo alemão Johann Kepler utiliza uma câmara escura em forma de tenda, em que havia uma lente e um espelho que direcionava a imagem para um tabuleiro, a fim de que o mesmo fizesse desenhos topográficos durante uma viagem à Alta Áustria; 1636 − o professor de matemática Daniel Schwenter descreve em seu livro Deliciae physico-mathematicae um sistema de lentes que combinavam três distâncias focais diferentes; 1646 − o padre alemão Athanasius Kircher descreve em sua obra Ars Magna lucis et umbrae uma câmara escura em forma de liteira; 1665 − o italiano Antonio Canaletto utiliza um sistema de lentes intercambiáveis em sua câmara escura como meio auxiliar para a realização de desenhos panorâmicos; 1676 – o professor de matemática Johann Christoph Sturm ilustra em sua obra Collegium Experimentale sive curiosum uma câmara escura cujo espelho interno inclinado a 45º refletia luz vinda da lente para um pergaminho azeitado colocado horizontalmente; além disso, havia uma carapuça preta que funcionava como para-sol, melhorando a qualidade da visualização da imagem; 1685 – o monge alemão Johann Zahn ilustrou em sua obra Oculis Artificialis teledioptricus vários tipos de câmaras portáteis como o tipo reflex, com 23 cm de altura e 60 cm de largura. Assim, a câmara escura chegou à perfeição, já que o sistema de Zahn já era muito parecida com a das câmaras fotográficas atuais: a luz, depois de atravessar a lente, refletia-se em um espelho plano e a imagem se formava sobre um vidro polido.
À medida que novos avanços se agregavam à câmara escura, a arte também já não seria mais a mesma, e o mesmo se pode dizer de nosso olhar em relação ao mundo que nos cerca:
Beginning in the late 1500s the figure of the camera obscura begins to assume a preeminent importance in delimiting and defining the relations between observer and world. Within several decades the camera obscura is no longer one of many instruments or visual options but instead the compulsory site from which vision can be conceived or represented. Above all it indicates the appearance of a new model of subjectivity, the hegemony of a new subject-effect. First of all the camera obscura performs an operation of individuation; that is, it necessary defines an observer as isolated, enclosed, and autonomous within its dark confines. (CRARY, 1992, pp. 38-39)
Assim, devido às novas técnicas alcançadas dentro do ambiente da física e de condições satisfatórias para controlar a imagem obtida pela câmara escura – a escolha de lentes, a abertura do diafragma, e a facilidade proporcionada pelas câmaras portáteis –, houve uma generalização de sua utilização, de modo especial, pelos artistas, já que desde os séculos XVIII e XIX desenvolvera-se toda uma indústria de instrumentos auxiliares para essa finalidade.
Poderíamos, inclusive, dizer que, diante dessa possibilidade mimética proporcionada pela câmara escura, para muitos artistas no século XIX, (assim como para o público em geral), o ideal em arte traduzia-se em uma reprodução não fictícia, mas em uma puramente naturalista, fiel à natureza. Pouco antes do advento da fotografia encontramos quadros que já oferecem a impressão de serem verdadeiras fotografias em preto e branco. (Cf.: STELZER, 1981, pp. 18-19)
Não obstante, os influxos da τέχυη e o fato de a imagem sempre estar condicionada historicamente, mesmo que sob uma ótica racional e cientificista, ela ainda se apoiaria, durante anos, no real, no palpável, cuja busca ainda seria a contiguidade; mesmo e apesar de que ainda estivéssemos condicionados a vê-la partir do olho de um indivíduo como lá no princípio, na formação incipiente do λόγος humano, quando se
buscava a objetividade, porém de uma forma subjetiva, pois tudo não passava de uma retratação daquilo que os olhos de um determinado “escriba” viam; logo, era uma forma particular de visão transmitida a um outro e desse a todo um conjunto de indivíduos de um mesmo segmento social. (BRANDÃO, 2003, p. 8)
Mesmo quando o Cubismo quebra o perspectivismo albertiano, ainda assim havia algo no mundo a ser retratado; assistiríamos a inúmeras outras correntes vanguardistas com suas novas especulações em torno da arte, da imagem, mas mesmo assim veríamos o continuísmo da aderência ao real, pouco importa que houvesse estilização, abstração: querem estilizar dados de um mundo palpável, querem abstrair elementos de um mundo real, possível, mesmo que onírico. No entanto, o futuro nos proporcionou mais do que uma nova maneira de ver as coisas, uma nova representação: a simulação.
Pode-se estabelecer uma confluência entre a revolução cibernética , pela qual estamos passando, e a do Renascimento, vetor básico para o olhar ocidental durante séculos: a matemática. Como visto, uma das principais diferenças entre a arte renascentista e a medieval foi a representação de cenas tridimensionais na tela e, para que isso fosse possível, foi necessário o domínio das leis geométricas de representação visual.
Já a baliza de nossa revolução principia ainda no século XIX, quando George Boole (1815-1864) fundamenta a lógica binária , demonstrando que os processos de raciocínio do cotidiano podem ser representados em termos de lógica formal e em termos matemáticos. Esses são, grosso modo, o princípio do processo digital, quando tudo o que está a nosso redor é reduzido a dois dígitos: 0 e 1. Eis que regressamos ao mundo da ratio, mas agora de forma mais impessoal do que nunca, pois já não somos mais intermediados pelo humano, mas pelo não humano.
Ambos andam lado a lado, confundindo-nos continuamente, pois já não sabemos o que é ou parece ser: se já vivíamos inseridos num mar de imagens em sua forma analógica e seu caráter mecânico, ainda mais agora devido ao processo digital.
Isso, evidentemente, trouxe suas implicações: mesmo na concretude espacial trazida pelo Renascimento, sua individualidade e perspectiva egoísta e unilocular, havia o contato físico, o tete à tete, mesmo que o gênio ficasse em sua redoma escura em busca da perfeição estética; agora, o que vemos é a certeza total da ubiquidade (não era somente Deus que era ubíquo?): podemos estar em todos os lugares, mas não estamos em lugar nenhum! Esvaímo-nos num eterno continuum de zeros e uns, para os quais não há individualidade, diferença, prazer e originalidade estéticos: o dígito binário não distingue uma foto artística da trivial, um quadro de da Vinci ou os rabiscos de uma criança, muito menos Bach de uma banda adolescente... é esse esvair-se que rompe a magia da fotografia, pois de sagrada passa a ser profana; de esperada, aguardada com ansiedade anterrevelação, é vista na hora, apagada, refeita, retocada via softwares de manipulação de imagens acessíveis a todos. Vemos, portanto, a banalização total: rompe-se, quase que por completo, a contiguidade, o índice:
a imagem que aparece sobre a tela não possui mais, tecnicamente, nenhuma relação direta com qualquer realidade preexistente. Mesmo quando se trata de uma imagem ou objeto numerizado, pois a numerização rompe esta ligação – esta espécie de cordão umbilical – entre a imagem e o real. São números e somente números expressos sob a forma binária na memória e nos circuitos do computador que preexistem a esta imagem e a engendram, entre o real e a simulação se interpõe uma operação computacional e algorítmica. A imagem numérica não é mais o registro de um traço deixado por um objeto preexistente pertencente ao mundo real (...); ela é o resultado de um processo em que a luz é substituída pelo cálculo, a matéria e a energia pelo tratamento da informação. Enquanto as imagens fundadas sobre a representação são testemunhos de uma forte aderência ao real, indissociáveis de uma realidade preexistente no espaço e no tempo, tanto quanto de uma vontade obsessional de escapar à sua atração, a relação da imagem numérica ao real obedece a uma outra lógica. (Couchot, op. cit. pp. 163-164)
Ao perder sua condição indicial, é como se a fotografia digital deixasse de existir enquanto objeto/espelho do real e passasse a representar um outro mundo. A própria visão também deixa de transmitir a certeza: que é real (diríamos, indicial, calcado na certeza de um referente contíguo)? Que é irreal (criação virtual, sem indicialidade)? Poderíamos dizer que a fotografia digital representa um novo Cubismo, pois também passa a construir imagens do mundo, não simplesmente representá-lo nem reproduzi-lo.
Assim, da mesma forma que a quebra definitiva da coerência no espaço figurativo, proporcionada com o advento do Cubismo, representou o rompimento total com o modelo albertiano (e com a imagem mimética aristotélica); algo parecido se deu com o surgimento da fotografia digital em relação à analógica, já que o surgimento daquela representou o rompimento com a ideia de verdade contida nesta. Se de uma lado a arte pictórica não seria mais a mesma a partir da revolução cubista, abrindo a pintura a várias possibilidades; de outro, nossa relação com as imagens fotográficas a partir da era digital (e todas as possibilidades que ela abre) também mudaria: passamos, efetivamente, a questionar a fotografia, a vê-la com outros olhos, não mais com os da verdade, mas com os da possibilidade; aprendemos a manipulá-la, a utilizá-la a nosso bel prazer; por fim, a imagem tornou-se acessível a todos de forma efetiva. Vemo-nos, portanto, diante de mais uma revolução imagética, de um novo Renascimento, afinal o futuro chegou.
(Quer saber mais sobre esse assunto? Acesse: http://www.jackbran.pro.br/iconofotologia/iconofotologia_entrada.htm)
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