Prof. Dr. Antônio Jackson de Souza Brandão
RESUMO – Apesar de todo o sucesso que a obra de J. K. Rowling representou para o mundo editorial, em especial para o segmento juvenil, Harry Potter foi, como grande parte dos best-sellers que atingem tais proporções, execrado por intelectuais, críticos, professores e pais.
Este artigo, no entanto, pretende mostrar como a comunidade escolar perdeu a chance de aproveitar o sucesso do livro em benefício dos próprios jovens que, ávidos, leram suas centenas de páginas. Assim, se não fosse devido a ideias preconcebidas, nossos alunos poderiam ter aprendido muito mais com as aventuras do pequeno bruxo, se seus professores (com o aval dos pais) pudessem ter tirado o máximo de proveito da obra e de seu mundo moral, ético, cultural e imagético.
PALAVRAS-CHAVE – Harry Potter e a pedra filosofal; preconceito; maravilhoso medieval; ética; literatura juvenil; imagem.
ABSTRACT – Despite all the success that the work of J. K. Rowling represented to the publishing world, in particular to the youth segment, Harry Potter was, as most best-selling books, reviled by intellectuals, critics, teachers and parents.
This article, however, aims to show how the school community missed a chance to capitalize on the success of the book for the benefit of young people themselves who, eager, read its hundreds of pages. Thus, if it were not due to preconceived ideas, our students could have learned much more with the adventures of the little wizard, if their teachers (with parental approval) could have taken full advantage of the work and of its moral, ethical, cultural and world imagery.
KEYWORDS – Harry Potter and the Sorcerer's Stone; prejudice; medieval marvelous; Ethics; Juvenile literature; imagery.
KEYWORDS – Harry Potter and the Sorcerer's Stone; prejudice; medieval marvelous; Ethics; Juvenile literature; imagery.
Introdução
Um dos grandes problemas enfrentados por pais e educadores é deparar-se com filhos e alunos desinteressados pela leitura. Evidentemente, tal situação não se restringe a uma determinada classe social, mas estende-se a grande parcela da sociedade tecnicista em que estamos inseridos.
Podem-se citar vários fatores para essa aparente apaticidade: a facilidade e a instantaneidade da informação proporcionada pela era da internet; a falta de incentivo dos pais que preferem delegar a responsabilidade para a escola; a falta de preparo de professores, cujo próprio despertar para a leitura também não foi, muitas vezes, estimulado em sua formação individual e profissional; a inépcia do Estado que não cumpre seu papel de gestor-mor, oferecendo condições mínimas para que as escolas públicas possam ter e manter bibliotecas em suas dependências[1].
Poderíamos elencar aqui diversos outros motivos não propiciadores à leitura, mas nunca chegaríamos nem a um denominador comum, nem a uma resposta única, afinal esses demandam uma série de fatores. Mas, o que parece inegável – não que eu esteja, totalmente, de acordo – é o papel essencial da escola na formação de novos leitores, daí a necessidade premente de se buscarem novas estratégias que não só despertem o interesse pela leitura, mas também que possam cooptar a participação dos pais nesse processo, seus verdadeiros protagonistas.
Estes não devem, contudo, hostilizar tentativas que visem ao estímulo oferecido por alguns professores que buscam romper paradigmas daquilo que se convencionou chamar de “obras clássicas”, desprezando tudo o que foge a esse convencionalismo, inferiorizando-as ou ainda as repelindo.
É pensando nesse novo modelo que vamos discutir o emprego de obras ditas mercadológicas que visam, segundo o lugar-comum, apenas a acumular riqueza a seus criadores e editores, ao empregarem – a partir de uma visão cerceadora e talvez preconceituosa – fórmulas prontas, como é o caso da saga Harry Potter.
Serão elas realmente perniciosas para nossos filhos e alunos, como é tão propalado, ou a partir delas um bom professor poderia tirar o máximo de proveito, a fim de levar seus alunos a outros voos? Seria possível, por exemplo, abordar a questão da moral, da ética e da imagética em Harry Potter e a pedra filosofal, primeiro volume da saga do pequeno bruxo, criada por J. K. Rowling, diante do despreparo de professores e da negativa de pais em relação à obra? Haveria outros temas inerentes nela que poderiam ser explorados por educadores, ou a saga não passa realmente de mera “bruxaria barata reduzida à aventura”, conforme a visão do crítico literário estadunidense Harold Bloom (2003)?
Harry Potter como livro paradidático: entre aceitação e preconceito
Muito se disse (e ainda se diz) a respeito da criação de J.K. Rowling: alguns a favor; outros contra. Aquilo, porém, que têm em comum é a paixão com que se expressa essa escolha: parece que o único consenso a respeito da obra é o fato de não haver em sua discussão um meio termo: ou é amada ou odiada, o que demonstra uma perigosa vertente para a intransigência.
Isso fica ainda mais evidente, quando se procura ler parte do que foi, por exemplo, postado na internet a seu respeito: de uma “apologia ao satanismo”, passando pelo “ocultismo” e pelo “paganismo”, até se chegar ao extremo de comparar o protagonista da série a um messias, a Jesus:
el mesías es una figura relacionada con la redención, con la sabiduría y hasta con el sentido de la justicia. También, por qué no, con lo heroico. Leyendo estas líneas, parece saltar a la vista que tanto en Jesucristo como en Harry Potter hay mucho de la dimensión mesiánica aludida con antelación. (SIMÓN PÉREZ, 2009, p. 209)
Ao empregar o conceito de figura messiânica para Harry Potter, Simón Pérez busca demonstrar, inclusive, uma correlação existente entre o casal Tiago (James) Potter e Lílian (Lily) Evans, pais do garoto, e a Sagrada Família, nas figuras do carpinteiro José e da Virgem Maria, pais de Jesus. (ibidem, p. 202)
Não é de somenos importância, evidentemente, a opinião da crítica literária que, da mesma forma, se posiciona ou de forma favorável ou contrária à obra. Exemplo de crítica feroz, encontramos no estadunidense Harold Bloom que, questionado a respeito de sua opinião acerca dos livros atuais destinados às crianças, foi categórico:
É um fenômeno de mercado. A maior parte dos livros para crianças à venda nas livrarias é idiota, não serve para nada, muito menos para suprir a necessidade de leitura de uma criança ou do leitor de qualquer faixa etária. Livros estão sendo confeccionados para vender e se tornar sucessos no cinema e na televisão. Isso nada mais é que uma máscara que oculta o rosto cada vez mais estúpido da era da informação. Os tais livros infantis ajudam a destruir a cultura literária. (BLOOM, 2003)
E a respeito da obra em questão:
Odeio Harry Potter. É bruxaria barata reduzida a aventura. É prejudicial ao leitor. Não tem densidade. A escrita é horrível. Lancei a polêmica, sabendo que eu atuaria como Hamlet, que defronta com um oceano de aborrecimentos. Continuo me incomodando com os fãs do pequeno feiticeiro. (ibidem)
Já a escritora e crítica britânica Antonia Susan Duffy, ao falar o sobre o sucesso de Harry Potter, diz que:
Ms. Rowling's magic world has no place for the numinous. It is written for people whose imaginative lives are confined to TV cartoons, and the exaggerated (more exciting, not threatening) mirror-worlds of soaps, reality TV and celebrity gossip. Its values, and everything in it, are, as Gatsby said of his own world when the light had gone out of his dream, ''only personal.''. (BYATT, 2003)
Acerca do sucesso que a obra teve em meio às crianças, prossegue Duffy:
the attraction for children can be explained by the powerful working of the fantasy of escape and empowerment, combined with the fact that the stories are comfortable, funny, just frightening enough. (ibidem)
A despeito das críticas (e por que não devido a elas), a saga do pequeno bruxo tornou-se um best-seller não restrito ao mundo anglo-saxão, de onde proveio, mas de maneira quase global. Um fato, porém, chama a atenção: por que tanta celeuma em torno de uma obra que conseguiu, de forma surpreendente, estimular o prazer da leitura em crianças e jovens?
Além disso, e diante da euforia suscitada pela saga, cumpre-se fazer os seguintes questionamentos: que poderia ter impedido o aproveitamento desse momento ímpar de forma sistemática nas e pelas escolas se, o mais difícil, para pais e de educadores – levar aos jovens o prazer em debruçar-se sobre um livro – já havia sido conquistado? Será que a obra, enquanto um todo narrativo que se constrói sobre uma ação, sobre um processo e com diegese (διήγησις) própria – que abrange, por exemplo, personagens, eventos, objetos, num contexto espacial e temporal – (AGUIAR E SILVA, 2011), possui tremendas fissuras incompatíveis com a excelência que se busca nos meios escolares? Ou, mais que isso, será que a saga do pequeno bruxo não passa de uma produção fútil, de qualidade duvidosa, nos moldes romanescos de princípios do século XIX, quando se editaram numerosos romances a um público ávido por esse tipo de produção? (ibidem, p. 682)
Claro está que muitas respostas poderiam ser conjecturadas, porém nos limitaremos a dois aspectos que, provavelmente, impediram sua utilização nos meios escolares:
a) a recorrência do preconceito em relação a determinadas obras que, por não pertencerem ao cânon, são consideradas não literárias;
b) o desconhecimento daquilo que pode ou não ser considerado como “obra paradidática”, passível de utilização nos meios escolares.
A antipatia em relação a Harry Potter provém do fato de que muitos educadores, independente de seus motivos, não puderam (ou não quiseram?) vislumbrar oportunidades para, a partir de sua leitura (se ela houve, é evidente) levantarem-se possíveis pontos que poderiam ser abordados em sala de aula. Isso se deveu à manutenção, em muitos aspectos, de critérios preconceituosos, que não deveriam mais coadunar com um moderno espírito pedagógico, cuja meta deveria ser a busca por interdisciplinaridade, bem como a criticidade antes de se fazer uma análise pouco profunda de um possível objeto de estudo.
De acordo com o dicionário Houaiss (2007), “preconceito” é “qualquer opinião ou sentimento concebido sem exame crítico”; ou ainda “sentimento hostil, assumido em consequência da generalização apressada de uma experiência pessoal ou imposta pelo meio”. Isso pressupõe que se toma juízo de algo sem ao menos ter um conhecimento mínimo do objeto que se condena, reprovando-o sem se preocupar com quaisquer possíveis méritos que possa ter; ou ainda, que se é condescendente com o período em que se vive, assentindo a generalização do lugar-comum de sua época.
Tal procedimento, não raro apesar do esclarecimento das classes artísticas, também foi muito empregado no Brasil, basta nos lembrar das palavras de Monteiro Lobato (2008), ao tratar da exposição de Anita Malfatti:
Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem normalmente as coisas [...]. A outra espécie é formada pelos que veem anormalmente a natureza e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. [...] Embora eles se deem como novos, percursores de uma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológico: nasceu com a paranoia e com a mistificação[...]. Essas considerações são provocadas pela exposição da senhora Malfatti onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e companhia. (grifos nossos)
Ou, ainda, da crítica acirrada de crítico Tristão de Ataíde, corroborada pelo poeta Jorge de Lima (1974), àquilo que chamamos de Geração de 22:
Acha Tristão de Ataíde que a literatura brasileira moderna [...] se esquecera do Brasil, que se expressava numa língua que não era a fala do povo, que enveredara por terras de Europa e lá se perdera, com o mundo do Velho Mundo. Trabalho deu a esse movimento literário atual, a que chamam de moderno, trazer a literatura brasileira ao ritmo da nacionalidade, isto é, integrá-la com as nossas realidades reais. Mais ou menos isso falou o grande crítico. Assim como falou do novo erro em que caiu esta literatura atual criando um convencionalismo modernista, uma brasilidade forçada, quase tão errada, quanto a sua imbrasilidade. Em tudo isso está certo Tristão.
Houve de fato ausência de Brasil nos antigos, hoje parece que há Brasil de propósito nos modernos. Porque nós não poderíamos com sinceridade achar Brasil no índio que Alencar isolou do negro, cedendo-lhe as qualidades lusas [...].
Da mesma forma que os nossos primeiros literatos cantaram a terra, os nossos poetas e escritores de hoje querem expressar o Brasil numa campanha literária de "custe o que custar". Surgiram no começo verdadeiros manifestos, verdadeiras paródias ao Casimiro e ao Gonçalves Dias [...].
Dois anos depois é o mesmo protesto de Tristão de Ataíde: "esse modernismo intencional não vale nada!" Entretanto nós precisamos achar a nossa expressão que é o mesmo que nos acharmos.
E parece que o primeiro passo para o achamento é procurar trazer o homem brasileiro à sua realidade étnica, política e religiosa.
No seio deste modernismo já se opera uma reação anti-antisintaxe, anti-antigramatical em oposição ao desleixo que surgiu em alguns escritos, no começo. Nós não temos um passado literário comprido (como têm os italianos, para citar só um povo), que nos endosse qualquer mudança no presente, pela volta a ele, renascimento dele, pela volta de sua expressão estilística ou substancial. A nossa tradição estilística, de galho deu, na terra boa em que se plantando dá tudo, apenas garranchos. (grifo nosso)
Normalmente, essa grita ocorre quando algo novo surge no cenário da arte, da sociedade ou da ciência e não se limita, evidentemente, a nosso país. Baudelaire, por exemplo, foi uma das vozes dissonantes que enxergava na incipiente fotografia uma mera imagem trivial, que nunca poderia ser posta junto a outras expressões artísticas; antevia nela, pelo contrário, a supressão ou até mesmo o corrompimento de algumas formas de arte (KRAUSS, 2000), como a pintura. Assim se expressou o poeta francês:
Estou convencido de que os progressos mal aplicados da fotografia contribuíram muito, como, aliás, todos os progressos puramente materiais, para o empobrecimento do gênio artístico francês já tão raro [...]. Quando se permite que a fotografia substitua algumas das funções da arte, corre-se o risco de que ela logo a supere ou corrompa por inteiro graças à aliança natural que encontrará na idiotice da multidão. É necessário, portanto, que ela volte ao seu verdadeiro dever, que é o de servir ciências e artes, mas de maneira bem humilde como a tipografia e a estenografia, que não criaram nem substituíram a literatura. [...] Mas se lhe for permitido [...], que desgraça para nós! (BAUDELAIRE, in DUBOIS, 2006, p. 29)
Quanto à segunda proposição levantada, a que trata da questão do livro paradidático, não se deve esquecer de que tal termo foi cunhado nos anos 70, em pleno regime ditatorial no Brasil e que não passava de um:
"tratamento" dado aos livros clássicos, com a intenção de torná-los mais acessíveis aos alunos. Esse "tratamento" consistia em colocar uma capa mais atraente, uma introdução com a contextualização histórica do texto, em inserir algumas notas explicativas de rodapé, além de acrescentar ao texto um grande número de ilustrações. (DALCIN, 2002, p. 21)
Assim, o “tornar mais atraente” não passava de uma tentativa de tornar tais livros comercialmente mais aceitos e acessíveis, independente de critérios acadêmicos ou culturais, como se pode pensar:
Do ponto de vista das editoras, paradidático é uma concepção comercial e não intelectual. Então, não interessa se é Machado de Assis, se é dicionário, se é não-sei-o-quê, o que interessa é o sistema de circulação. Os editores leram Marx, se não leram entenderam mesmo sem ler, quer dizer, eles sabem que o que define realmente um produto é a possibilidade de circulação desse produto. Então, se esse produto circula como paradidático – ou como diriam vocês, acadêmicos, "enquanto" paradidático –, ele é um paradidático. Ele pode ser um romance, pode ser um ensaio, pode ser qualquer coisa; então, essa é a definição de paradidático nos meios editoriais. Então é muito fácil, não tem absolutamente nenhuma dificuldade nessa definição. Ora, há certos temas que o livro didático não dá conta, e você precisa, às vezes, verticalizar alguns temas. Então, esse foi o objetivo. (PINSKY apud MUNAKATA, 1997, p. 102)
Em suma, os livros conhecidos como paradidáticos visam tão-só a servir de apoio e de complementação “no processo de ensino e aprendizagem nas escolas, seja como material de consulta do professor, seja como material de pesquisa e de apoio às atividades do educando” (MUNAKATA, p. 103). Tal complementação chega a ser desejável, na medida em que muitos críticos pressupõem que os livros didáticos são, por si sós, insuficientes para o ensino-aprendizado, por trazer verdades “prontas e acabadas”, resultando daí a necessidade de se lançarem paradidáticos, a fim de se buscar um “confronto de ideias.” [2] (ibidem, p. 103)
Constata-se, dessa forma, que um dos motivos propagados para não se empregarem obras como a que é objeto deste artigo seria o fato de que a mesma, sendo um mero produto mercadológico, visaria somente ao lucro de seus editores e escritores. Revelaria, por conseguinte, uma qualidade duvidosa, incompatível com o emprego em meios escolares, onde se deve buscar a excelência, reservada, de maneira indiscutível, somente aos “clássicos”.
Vale sempre ressaltar que, em muitos aspectos, mais do que a obra em si, cabe ao professor a preponderância na escolha de qualquer paradidático, de acordo com certos objetivos predefinidos por ele, ou pelo colegiado a que pertence. Contudo, não se deve perder de vista que os beneficiários desse processo têm de ser os alunos, por isso o docente precisa buscar espaços criados no mundo deles e, a partir daí, traçar suas próprias estratégias, a fim de levar-lhes o conhecimento dos “clássicos”; mesmo que, num primeiro momento, de forma indireta. Não se deve, contudo, esquecer de que compete à família, de forma ainda mais ativa é evidente, uma grande parcela da responsabilidade quando se fala em estímulo à leitura.
Devido a isso e ainda vinculados à coleção Harry Potter, um fato peculiar chama-nos a atenção, principalmente no que se refere à relação entre pais e filhos: apesar de pressionada por estes e de haver lhes comprado portentosos volumes da série do pequeno bruxo, muitos daqueles sequer cogitaram que suas crianças pudessem empregar esses livros em sala de aula. Enxergava-se na obra de Rowling apenas mais um modismo, perecível e efêmero, portanto não passível de aplicabilidade no ensino-aprendizagem e, de modo especial, em questões literárias.
Reside aqui um fato: que leva uma obra a ser considerada “literária”? E que seria “não literário”? Assim se expressa Aguiar e Silva (2011, p. 14) acerca da literatura:
não consiste apenas numa herança, num conjunto cerrado e estático de textos inscritos no passado, mas apresenta-se antes como um ininterrupto processo histórico de produção de novos textos [...] que implica [...] a existência de específicos mecanismos semióticos não alienáveis da esfera da historicidade e que se objetiva num conjunto aberto de textos, os quais não só podem representar, no [...] seu aparecimento, uma novidade e uma ruptura imprevisíveis em relação aos textos já conhecidos, mas podem ainda provocar modificações profundas nos textos até então produzidos, na medida que propiciam, ou determinam, novas leituras desses mesmos textos. (grifo nosso)
Assim, a simples imposição de obras alijadas de seu contexto, pode fazer com que os mais jovens aborreçam do importante papel que a leitura de textos literários pode lhes possibilitar, afinal, como diz Italo Calvino (1994, p. 10), sobre a leitura dos clássicos, “as leituras da juventude podem ser pouco profícuas pela impaciência, distração, inexperiência das instruções para o uso, inexperiência da vida.” Apesar de, à continuação, afirmar que essas mesmas obras:
Podem ser (talvez ao mesmo tempo) formativas no sentido de que dão uma forma às experiências futuras, fornecendo modelos, recipientes, termos de comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza: todas, coisas que continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada do livro lido na juventude. (ibidem, p. 20)
Reflexões suscitadas pela obra que poderiam ter sido empregadas em sala de aula
Convém salientar, evidentemente, que não se tem a pretensão de afirmar, com os exemplos acima, que o livro objeto deste artigo deva ser considerado uma “obra-prima”. Na realidade, não se trata aqui de tecerem-se questões meritórias, mas tão-só verificar a plausibilidade de seu emprego, como material escolar, devido ao inegável boom provocado pelo mesmo, se ideias preconcebidas a seu respeito não o houvesse impedido.
Selecionamos alguns temas que poderiam ter sido explorados em sala de aula, seja por meio de seminários, debates regrados, ou mesmo como temática redacional. Todas, por sinal, extremamente pertinentes sob o ponto de vista pedagógico:
· a importância da educação familiar na construção do caráter da criança, futuro cidadão. Isso é possível observar quando Malfoy dirige-se a Harry sem ainda saber de quem se tratava:
– Meu pai está na loja ao lado comprando meus livros e minha mãe está mais adiante procurando varinhas – disse o garoto. Tinha uma voz de tédio, arrastada. – Depois vou levar os dois para dar uma olhada nas vassouras de corridas. Não vejo por que os alunos de primeira série não podem ter vassouras individuais. Acho que vou obrigar papai a me comprar uma e vou contrabandeá-la para a escola às escondidas. (ROWLING, 2000, p. 70, grifo nosso)
O tédio do garoto, por exemplo, é a pura demonstração de falta de estímulo decorrente do excesso de mimo; o que pode, inclusive, levá-lo a atitudes impulsivas, bem como causar danos aos outros como a suspensão de Hagrid da escola, que se verá ao longo da obra.
Içami Tiba (2007) exemplifica essa formação do caráter:
Quando um menino, correndo pela casa, bate a cabeça na mesa e abre um berreiro, rapidamente vem a mãe – ou substituta – pega-o no colo e dá uns tapinhas na mesa dizendo: ''Mesa feia... ãh! ãh! ãh!'' É do sistema límbico o menino aprender com a desagradável dor que não se pode bater a cabeça na mesa. Ele aprende que para sobreviver não deve ficar batendo com a cabeça na mesa.
Entretanto, quando a mãe condena a mesa, é como se ela dissesse ''A mesa é uma estúpida que vem atrapalhar a vida do meu filho que andava inocentemente pela casa''. O córtex aprende que o menino é bom e a mesa é ruim. Essa mãe poderia dizer: ''Esta mesa não tem culpa, filho, você que tome cuidado ao correr pela casa''.
Em outra passagem do livro, complementando o grifo do texto anterior, temos a exemplificação do que foi dito por Tiba, de como o excesso de mimos pode agir , negativamente, sobre um filho,. O tio de Harry, Válter, fazendo tudo para impedir que o sobrinho órfão recebesse uma carta-convite de Hogwarts – endereçada ao “Armário sob a Escada” onde o garoto vivia há uma década –, acaba por ceder-lhe um quarto vazio que era tomado por brinquedos e pertences de seu filho Duda. Este, por nunca ter ouvido um não, acaba abalando-se por completo: cego, em seu egoísmo, não consegue enxergar que o primo vivia em uma condição insalubre, enquanto ele não só possuía um quarto próprio, como também outro só para guardar quinquilharias.
Ao chegar ao novo quarto, Harry põe-se a escutar o alvoroço criado pelo primo:
Lá de baixo veio o barulho de Duda gritando com a mãe:
– Eu não quero ele lá... eu preciso daquele quarto... mande ele sair.
Harry suspirou e se esticou na cama. Ontem ele teria dado qualquer coisa para estar ali. Hoje, preferia estar no seu armário com aquela carta do que ali em cima sem ela.
Na manhã seguinte, no café, todos estavam muito quietos. Duda estava em estado de choque. Berrara, batera no pai com a bengala, vomitara de propósito, dera pontapés na mãe e atirara sua tartaruga pelo teto da estufa de plantas e nem assim conseguira o quarto de volta. (ROWLING, 2000, p. 37, grifo nosso)
Ao se constatar a importância do papel desempenhado pelos pais e de sua influência na vida futura dos filhos, verifica-se que grande parte dos problemas enfrentados, atualmente, por aqueles advém de seu “excesso de zelo” ou da falta de limites impostos a estes. Assim, é mais cômodo e menos traumático ignorarem-se preceitos éticos e satisfazerem-se as necessidades prementes dos filhinhos, como adquirir “vassouras de corrida” mesmo sabendo que são proibidas; pois, caso contrário, esses “berram, batem, vomitam, chutam...”
Assim, saber dividir, conhecer a importância do outro, perceber o valor do mundo e das coisas a nossa volta, deveria fazer parte inerente da educação dada pelos pais; pois, sem isso a criança torna-se amarga, centralizadora e sem amigos, ou tenta comprar amizades ao se empregarem métodos coercitivos, como o emprego da força ou impondo sua posição frente ao grupo em que se está inserida. Dessa forma, cresce e amadurece com a certeza de que tudo lhe é possível por meio do grito, da força e da intimidação.
Além de Duda, a outra personagem com essas características, como já se verificou, é Malfoy. Para essas crianças, tudo e todos têm de orbitar a seu redor, são sempre as melhores, as que todos têm de dar atenção; em suma, as preferidas. As outras não passam de uma “mesa”, empregando o exemplo de Tiba, por isso são sempre as ruins:
Três garotos entraram e Harry reconheceu o do meio na hora: era o garoto pálido da loja de vestes de Madame Malkin. Olhou para Harry com um interesse muito maior do que revelara no Beco Diagonal.
— É verdade? — perguntou — Estão dizendo no trem que Harry Potter está nesta cabine. Então é você?
— Sou — respondeu Harry. Observava os outros garotos. Os dois eram fortes e pareciam muito maus. Postados dos lados do menino pálido eles pareciam guarda-costas.
— Ah, este é Crabbe e este outro, Goyle — apresentou o garoto pálido displicentemente, notando o interesse de Harry — E meu nome é Draco Malfoy.
Rony tossiu de leve, o que poderia estar escondendo uma risadinha.
Malfoy olhou para ele.
— Acha o meu nome engraçado, é? Nem preciso perguntar quem você é. Meu pai me contou que na família Weasley todos têm cabelos ruivos e sardas e mais filhos do que podem sustentar. — Virou-se para Harry — Você não vai demorar a descobrir que algumas famílias de bruxos são bem melhores do que outras, Harry. Você não vai querer fazer amizade com as ruins. E eu posso ajudá-lo nisso.
Ele estendeu a mão para apertar a de Harry, mas Harry não a apertou.
— Acho que sei dizer qual é o tipo ruim sozinho, obrigado. — disse com frieza.
Draco não ficou vermelho, mas um ligeiro rosado coloriu seu rosto pálido.
— Eu teria mais cuidado se fosse você, Harry. — disse lentamente. — A não ser que seja mais educado, vai acabar como os seus pais. Eles também não tinham juízo. Você se mistura com gentinha como os Weasley e aquele Rúbeo e vai acabar se contaminando. (ROWLING, 2000, pp. 96-97, grifo nosso)
· Concomitante à questão da formação do caráter, há a questão do senso e da consciência moral. É possível exemplificá-los, quando Harry, que nunca havia possuído dinheiro, ofereceu-se para comprar aquilo que Rony não podia no momento (apesar de este não lhe ter pedido nada). O órfão manifesta, com tal atitude, seu senso moral:
Por volta do meio-dia e meia ouviram um grande barulho no corredor e uma mulher toda sorrisos e covinhas abriu a porta e perguntou:
— Querem alguma coisa do carrinho, queridos?
Harry, que não tomara café da manhã ergueu-se de um salto, mas as orelhas de Rony ficaram vermelhas outra vez e ele murmurou que trouxera sanduíches. Harry foi até o corredor.
Nunca tivera dinheiro para doces na casa dos Dursley e agora que seus bolsos retiniam com moedas de ouro e prata, estava disposto a comprar quantas barrinhas de chocolate pudesse carregar, mas a mulher não tinha barrinhas. Tinha feijõezinhos de todos os sabores, balas de goma, chicles de bola, sapos de chocolate, tortinhas de abóbora, bolos de caldeirão, varinhas de alcaçuz e várias outras coisas estranhas que Harry nunca vira na sua vida. [...]
Rony arregalou os olhos quando Harry trouxe tudo para a cabine e despejou no assento vazio.
— Que fome, hein?
— Morrendo de fome — respondeu Harry, dando uma grande dentada na tortinha de abóbora.
Rony tirara um embrulho encaroçado e abriu-o. Havia quatro sanduíches dentro. Abriu um e disse:
— Ela sempre se esquece que não gosto de carne enlatada.
— Troco com você por um desses — propôs Harry, oferecendo um pastelão de carne. — Tome...
— Você não vai querer isso, é muito seco. Ela não tem muito tempo —acrescentou depressa. — Você sabe, somos cinco.
— Come... Coma um pastelão — disse Harry, que nunca tivera nada para dividir com alguém antes, aliás, nem ninguém com quem dividir. Era uma sensação gostosa, sentar-se ali com Rony, acabar com todas as tortas e bolos de Harry (os sanduíches ficaram esquecidos).
A filósofa Marilena Chauí (2000, p. 335) aborda o senso e a consciência moral da seguinte maneira:
[...] dizem respeito a valores, sentimento, intenções, decisões e ações referidos ao bem e ao mal e ao desejo de felicidade. Dizem respeito às relações que mantemos com os outros e, portanto, nascem e existem como parte de nossa vida intersubjetiva.
Em outro momento e sem conhecer o conceito moral de forma literal, agora é a vez de Rony demonstrar a Harry um momento de felicidade, quando este – que recebia somente desprezo de seus tios e primo – recebe da mãe daquele um suéter de presente de natal:
Quando acordou cedo na manhã seguinte, porém, a primeira coisa que viu foi uma pequena pilha de embrulhos ao pé de sua cama.
– Feliz Natal – disse Rony sonolento quando Harry pulou da cama e vestiu o roupão.
– Para você também – falou Harry. – Olhe só isso! Ganhei presentes?
[...]
– Acho que quem mandou esse – disse Rony, ficando um pouco vermelho e apontando para um embrulho disforme. – Mamãe. Eu disse a ela que você não estava esperando receber presentes... ah, não... – gemeu –, ela fez para você um suéter Weasley.
Harry rasgou o papel e encontrou um suéter tricotado com linha grossa verde-clara e uma grande caixa de barras de chocolates feito em casa. (ROWLING, 2000, p. 173, grifo nosso)
· A ética, termo tão propalado em nossa sociedade atualmente, também pode ser abordada e discutida, a partir da obra. A palavra, cuja origem etimológica grega, ἦθικος, quer dizer “tudo aquilo que pertence, caracteriza ou expressa o caráter” [de ἦθος – “como as pessoas atuam, seu caráter, sua disposição” (PAPE, 2004)].
Segundo Chauí (p. 336), a ética gira em torno da problemática da violência
e dos meios para evitá-la, diminuí-la, controlá-la. Diferentes formações sociais e culturais instituíram conjuntos de valores éticos como padrões de conduta, de relações intersubjetivas e interpessoais, de comportamentos sociais que pudessem garantir a integridade física e psíquica de seus membros e a conservação do grupo social.
A mesma que é descortinada no livro de Rowling e, de modo especial, na cena em que Malfoy destrata Hagrid, funcionário de Hogwarts:
Malfoy virou-se então para Hagrid.
– Não vou entrar nessa floresta – disse, e Harry ficou contente de ouvir a nota de pânico em sua voz.
– Vai, sim, se quiser continuar em Hogwarts – disse Hagrid com ferocidade. – Você agiu mal e agora tem de pagar pelo que fez.
– Mas isso é coisa para empregados e não para estudantes. Achei que íamos fazer uma cópia ou outra coisa do gênero, se meu pai souber que eu estou fazendo isso, ele...
– ...lhe dirá que em Hogwarts é assim – rosnou Hagrid. – Fazer cópia! Para que serve? Você vai fazer uma coisa útil ou vai sair da escola. E se pensa que seu pai vai preferir que você seja expulso, então volte para o castelo e faça suas malas. Vamos!
Malfoy não se mexeu. Encarou Hagrid furioso e em seguida baixou os olhos. (ROWLING, 2000, pp. 215-216, grifo nosso)
Quando alguém aceita participar de uma instituição sabe que terá direitos, bem como deveres. Ao entrar em Hogwarts, os pais de Malfoy sabiam, exatamente, o que seu filho esperaria, por isso o garoto se cala diante das palavras ameaçadoras do “mero funcionário” Hagrid. Sob esse ponto de vista, não haveria a necessidade de uma lei que estabelecesse essas relações em Hogwarts, visto que já há um “contrato” firmado entre as partes, ou seja, entre a escola e seus alunos.
Não faça com os outros o que você não quer que façam com você. Simples, não? Trata-se de uma norma básica de conduta, uma norma elementar, óbvia. É chamada de "regra de ouro", pois é um princípio ético universal que aparece em quase todas as filosofias morais, em quase todas as religiões.
O que faz todo o sentido. Sem que se pratique minimamente a "regra de ouro", a vida em sociedade é inviável. Basta raciocinar pelo inverso: o que seria de uma comunidade em que cada um fizesse ao próximo exatamente aquilo que não tolera para si mesmo? (BUCCI, 2002)
· Muitos outros temas ainda poderiam ser abordados, como a questão do “espelho Ojesed” (“desejo, ao contrário), espécie de portal que revela o reflexo dos sentimentos velados do “eu” inconsciente:
[...] — Agora, você é capaz de concluir o que é que o Espelho de Ojesed mostra a nós todos?
Harry sacudiu negativamente a cabeça.
— Deixe-me explicar. O homem mais feliz do mundo poderia usar o Espelho de Ojesed como um espelho normal, ou seja, ele olharia e se veria exatamente como é. Isso o ajuda a pensar?
Harry pensou. Então respondeu lentamente:
— Ele nos mostra o que desejamos... Seja o que for que desejemos...
— Sim e não — disse Dumbledore — Mostra-nos nada mais nem menos do que o desejo mais íntimo, mais desesperado de nossos corações. Você, que nunca conheceu sua família, a vê de pé a sua volta. Ronald Weasley, que sempre teve os irmãos a lhe fazerem sombra, vê-se sozinho, melhor que todos os irmãos. Porém, o espelho não nos dá nem o conhecimento nem a verdade. Já houve homens que definharam diante dele, fascinados pelo que viam, ou enlouqueceram sem saber se o que o espelho mostrava era real ou sequer possível. O espelho vai ser levado para uma nova casa amanhã, Harry, e peço que você não volte a procurá-lo. Se algum dia o encontrar, estará preparado. Não faz bem viver sonhando e se esquecer de viver, lembre-se. E agora, por que você não põe essa capa admirável outra vez e vai dormir? (ROWLING, pp. 184-185)
· Há, ainda, a questão da morte, como problema existencial e de suas consequências nos indivíduos que ficam alijados de seus entes queridos. Esquiva-se, muitas vezes, dessa temática, a maioria da “literatura infantil” contemporânea que procura mais divertir ou informar, privando a criança (e por que não muitos jovens) de um significado mais profundo e expressivo da vida (BETTELHEIM, 2002):
A criança necessita muito particularmente que lhes sejam dadas sugestões em forma simbólica sobre a forma como ela pode lidar com estas questões e crescer a salvo para a maturidade. As “estórias fora de perigo” não mencionam nem a morte nem o envelhecimento, os limites de nossa existência, nem o desejo pela vida eterna. O conto de fadas, pelo contrário, confronta a criança honestamente com os predicamentos humanos básicos.
Por exemplo, muitas estórias de fadas começam com a morte da mãe ou do pai; nestes contos a morte do progenitor cria os problemas mais angustiantes. (ibidem, p. 14-15)
Na obra em questão, vários são os momentos em que o protagonista é levado a pensar na morte dos pais. Há um, porém, em que Harry tem de testar seus limites, quando Voldemort, ao tentar tomar-lhe a pedra filosofal, avilta-o valendo-se da lembrança de seus pais mortos, a fim de desestabilizá-lo:
Então ele sabia. A sensibilidade voltou repentinamente às pernas de Harry. Ele cambaleou para trás.
— Não seja tolo — rosnou o rosto. — É melhor salvar sua vida e se unir a mim... Ou vai ter o mesmo fim dos seus pais... Eles morreram suplicando piedade...
— MENTIRA! — gritou Harry inesperadamente.
Quirrell estava andando de costas para ele, de modo que Voldemort pudesse vê-lo. O rosto malvado sorria agora.
— Que comovente... — sibilou. — Sempre dei valor à coragem... E, menino, seus pais foram corajosos. Matei seu pai primeiro e ele me enfrentou com coragem... Mas sua mãe não precisava ter morrido... Estava tentando protegê-lo... Agora me dê a pedra, a não ser que queira que a morte dela tenha sido em vão. (ROWLING, 2000, pp. 250-251, grifo nosso)
O livro de Rowling aproxima-se, portanto, dos contos de fadas, pois emprega essa temática no protagonista:
Ao contrário do que acontece em muitas estórias infantis modernas, nos contos de fadas o mal é tão onipresente quanto a virtude. Em praticamente todo conto de fadas o bem e o mal recebem corpo na forma de algumas figuras e de suas ações, já que bem e mal são onipresentes na vida e as propensões para ambos estão presentes em todo homem. É esta dualidade que coloca o problema moral e requisita a luta para resolvê-lo. (BETTELHEIM, 2002, p. 15)
Interessante notar como Dumbledore retrata a morte para Harry após o embate deste com Quirrell/Voldemort:
— Mas isto quer dizer que ele e a mulher vão morrer, não é?
— Eles têm elixir suficiente para deixar os negócios em ordem e então, é, eles vão morrer.
Dumbledore sorriu ao ver a expressão de surpresa no rosto de Harry.
— Para alguém jovem como você, tenho certeza de que isto parece incrível, mas para Nicolau e Perenelle, na verdade, é como se fossem deitar depois de um dia muito, muito longo. Afinal para a mente bem estruturada, a morte é apenas uma grande aventura seguinte. Você sabe, a Pedra não foi uma coisa tão boa assim. Todo o dinheiro e a vida que a pessoa poderia querer! As duas coisas que a maioria dos seres humanos escolheriam em primeiro lugar. O problema é que os humanos têm o condão de escolher exatamente as coisas que são piores para eles. (ROWLING, 2000, pp. 253-254, grifo nosso)
Essa visão maniqueísta do mundo, concebida na luta entre o bem – representado por Harry – e o mal – representado por Quirrell/Voldemort –, encontra-se de forma contundente ao longo da obra; e, ao contrário do lugar-comum que insiste em considerar tal aspecto impróprio para a educação de crianças e jovens, sua função vai além e adentra em sua formação moral e intelectual:
Não é o fato de o malfeitor ser punido no final da estória que torna nossa imersão nos contos de fadas uma experiência em educação moral, embora isto também se dê. Nos contos de fadas, como na vida, a punição ou o temor dela é apenas um fator limitado de intimidação do crime. A convicção de que o crime não compensa é um meio de intimidação muito mais efetivo, e esta é a razão pela qual nas estórias de fadas a pessoa má sempre perde. Não é o fato de a virtude vencer no final que promove a moralidade, mas de o herói ser mais atraente para a criança, que se identifica com ele em todas as suas lutas. Devido a esta identificação a criança imagina que sofre com o herói suas provas e tribulações, e triunfa com ele quando a virtude sai vitoriosa. A criança faz tais identificações por conta própria, e as lutas interiores e exteriores do herói imprimem moralidade sobre ela. (BETTELHEIM, 1980, p. 15)
Harry Potter e aspectos do medievo?
Quando se pensa em dragões, unicórnios, bruxos, poções mágicas, pedra filosofal... seguramente, vem-nos à mente toda a riqueza cultural da Idade Média. Dessa forma, além dos aspectos moralizantes que vimos acima e passíveis de serem trabalhados com a obra objeto deste artigo, há outros que poderiam auxiliar os professores a esclarecer certos aspectos do medievo, como o maravilhoso medieval, os bestiários e a alquimia.
· A palavra “maravilhoso” vem do latim mirabilia (plural de mirabilis), que significa “maravilhas” e, juntamente com o fantástico e o estranho, constituem gêneros ligados a fenômenos sobrenaturais. Tzvetan Todorov em sua obra Introdução à literatura fantástica (1981) procura demonstrar a diferença entre eles, destacando que no caso do maravilhoso, os elementos sobrenaturais não provocam nenhuma reação nem nas personagens, nem no leitor implícito. Isso pressupõe que tais fenômenos são aceitos como parte efetiva do mundo representado, e uma “ausência do princípio da causalidade que outorga aos acontecimentos extraordinários, aos personagens sobrenaturais, aos espaços imaginários e ao tempo fictício uma legitimidade a priori”. (CHIAMPI apud MARÇAL, 2009, p. 2).
O fantástico, por sua vez, representa, ainda segundo Todorov (1981), o momento da incerteza, quando nos encontramos diante dos seguintes questionamentos: tudo não passou de “realidade” ou “sonho”, de “verdade” ou “ilusão”? (p. 15) Assim, quando respondemos a tais questões já não estaríamos mais diante do fantástico, cujo cerne é a vacilação, a incerteza, mas diante do estranho ou do maravilhoso:
O fantástico não dura mais que o tempo da vacilação: a vacilação comum ao leitor e ao personagem, que devem decidir se o que percebem provém ou não da “realidade”, tal como existe para a opinião corrente. Ao finalizar a história, o leitor, se o personagem não o tiver feito, toma uma decisão: opta por uma ou outra solução, saindo assim do fantástico. Se decidir que as leiras da realidade ficam intactas e permitem explicar os fenômenos descritos, dizemos que a obra pertence a outro gênero: o estranho. Se, pelo contrário, decide que é necessário admitir novas leiras da natureza mediante as quais o fenômeno pode ser explicado, entramos no gênero do maravilhoso. (TODOROV, 1981, p. 24)
Isso fica claro, em Harry Potter, após o estranhamento inicial diante dos fantasmas que apareceram na sala comunal no início do ano letivo. Mesmo o protagonista não se apavorara tanto com aquela cena insólita, repleta de espectros, já que temia mais pelo destino que lhe seria dado pelo “chapéu seletor”:
Ele ofegou. E as pessoas à sua volta também. Uns vinte fantasmas passaram pela parede dos fundos. Brancos-pérola e ligeiramente transparentes, eles deslizaram pela sala conversando e entre si, mal vendo os alunos do primeiro
ano. Pareciam estar discutindo. O que lembrava um fradinho gorducho ia dizendo:
— Perdoar e esquecer eu diria, vamos dar a ele uma segunda chance...
— Meu caro Frei, já não demos a Pirraça todas as chances que ele merecia? Ele mancha a nossa reputação e, você sabe, ele nem ao menos é um fantasma. Nossa, o que é que essa garotada está fazendo aqui?
Um fantasma, que usava uma gola de rufos engomados e meiões, de repente reparou nos alunos do primeiro ano.
Ninguém respondeu.
— Alunos novos! — disse o frei Gorducho, sorrindo para eles.
— Estão esperando para ser selecionados, imagino?
Alguns garotos confirmaram com a cabeça, mudos.
— Espero ver vocês na Lufa-Lufa! — falou o frei. — A minha casa antiga, sabe?
— Vamos andando agora — disse uma voz enérgica. — A Cerimônia de Seleção vai começar.
A Professora Minerva voltara e um a um os fantasmas saíram voando pela parede oposta.
— Agora façam fila e me sigam. (ROWLING, 2000, p. 103)
Uma das críticas acerca da obra objeto deste artigo seria o fato de a irrealidade de seu mundo poder afetar a jovens e crianças, que viveriam num mundo de “irrealidade” distante da “certeza” que nos cerca. Tais questionamentos, evidentemente, são despropositados, visto que Harry Potter se trata de uma obra de ficção. Quando Todorov fala acerca do fantástico, por exemplo, explicita que a verossimilhança não se opõe ao gênero, visto que é uma categoria que aponta à coerência interna e à submissão ao gênero; logo, é verossímil no gênero “que se deem reações ‘fantásticas’” (p. 26). Por isso que, de uma forma semelhante,
o discurso narrativo do Maravilhoso não problematiza a dicotomia entre o real e o imaginário, posto que a verossimilhança não está no centro das preocupações deste discurso. O conto maravilhoso relata acontecimentos impossíveis de se realizar dentro de uma perspectiva empírica da realidade, sem aos menos referir-se ao absurdo que todo este relato possa parecer ao leitor. A narrativa do Maravilhoso instala seu universo irreal sem causar qualquer questionamento, estranhamento ou espanto no leitor porque, ao não estabelecer nenhuma via de conexão entre o universo convencionalmente conhecido como real e sua contradição absoluta, o irreal, reforça os parâmetros que o orientam no seu conhecimento empírico do que seja a realidade. (MARÇAL, 2009, p. 2, grifo nosso)
O mundo de Hogwarts está, portanto, perfeitamente construído: é real, existe, não é contraditório, afinal é o mundo da narrativa e, como tal, “constitui uma entidade delimitada topologicamente e possui uma organização interna que o configura como um todo estrutural.” (AGUIAR E SILVA, 2011, p. 575)
Ora, isso pressupõe, evidentemente, que fora da narrativa, tal realidade deixe de existir, já que a
diegese de um texto narrativo literário não possui existência independente em relação ao texto [...], só adquire existência através do discurso de um narrador e por isso essa existência é indissociável das estruturas textuais, das microestruturas estilísticas como das macroestruturas técnico-compositivas. (ibidem, p. 717)
Não se quer dizer, contudo, que não possa haver uma transcodificação intersemiótica desse discurso diegético, basta se verificar que a obra em questão, assim como toda a saga, foi parar nos cinemas; quando ocorrem, é evidente, modificações em sua estrutura basilar.
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Figura 1
Blêmia, Crônicas de Nuremberg, de Hartmann Schedel (1493), folium XII
Harry Potter, como já havia anteriormente mencionado, aproxima-se do conto de fadas e, segundo Bettelheim (2002), como tal, contribui para a formação do processo de amadurecimento da criança. Todorov (1981) explica que essa aproximação do maravilhoso com o conto de fadas dá-se por este ser uma das variedades daquele: “os acontecimentos sobrenaturais não provocam nele surpresa alguma: nem o sonho que dura cem anos, nem o lobo que fala, nem os dons mágicos das fadas.”(p. 30)
Assim como vários outros elementos da cultura humana, o maravilhoso
faz parte de nosso patrimônio hereditário, e mesmo que cada sociedade crie um maravilhoso específico, este se alimenta sempre de um maravilhoso anterior, com o qual não pode evitar o confronto. Uma hereditariedade continuada, que pode ser aceita, modificada ou recusada, mas que significa, de qualquer forma, tomada de posição tanto individual quanto coletiva. (LANCIANI, 1991, p. 21)
Não se pode negar, que grande parte do preconceito existente em relação à Harry Potter remonte ainda à ideologia burguesa do século XIX, quando se chegou ao apogeu (iniciado com o Iluminismo) da negação a tudo que se referisse ao sobrenatural, ao ocultismo, ao pensamento mágico, afinal se identificava em
tais temas e formas de concepção de mundo (...) uma cultura primitiva e "devidamente dominada" pela superioridade da sua civilização. O conto maravilhoso foi apropriado pelo mundo burguês como antimodelo instrutivo daquilo em que não se pode crer, porque sua estrutura inverossímil e hermética não abala as coordenadas racionais sobre as quais se apoia a dicotomia excludente entre o real e o irreal. (MARÇAL, 2009, p. 2)
· Há, inserido no maravilhoso medieval, a presença de vários tipos de animais fantásticos, cuja existência não era refutada pela maioria das mentes do período, por isso além de aceitos e reconhecidos eram catalogados da mesma maneira que os seres naturais e conhecidos, em coletâneas chamadas de “bestiários”.
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Figura 2
Panotios, Crônicas de Nuremberg, de Hartmann Schedel (1493), folium XII
É evidente que para o homem medieval todas as informações que constavam em tais coletâneas era “ciência”, não no sentido contemporâneo, mas naquele que tais homens podiam compreender.
Figura 3
Ciápodes, Crônicas de Nuremberg, de Hartmann Schedel (1493), folium XII
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Figura 3
Ciápodes, Crônicas de Nuremberg, de Hartmann Schedel (1493), folium XII
Em meio a essas criaturas, há inclusive diversas raças humanas igualmente fantásticas e monstruosas que viviam além da Europa conhecida, em terras desconhecidas e longínquas. Entre eles podem-se citar as “blêmias” cujos olhos e boca estavam no peito, visto não possuírem cabeça (fig. 1); os “panotios”, cujas orelhas enormes lhe cobriam o corpo (fig. 2); os “ciápodes” que possuíam um único pé enorme, utilizado como guarda-sol (fig. 3); os “hipópodes” com corpo humano e patas de cavalo, à semelhança dos centauros; os “cinocéfalos”, homens com cabeça de cachorro, que não falavam, mas latiam para se comunicar; as “mantícoras” com seu corpo de leão, cauda de escorpião e cabeça humana; entre outros.
Figura 4
Detalhe do tímpano da catedral de Vézelay, Espanha. Note-se que à direita de Cristo estão os representantes da raça dos cinocéfilos; e, à esquerda, os dos panótios, c. 1130
Todas essas criaturas fantásticas eram vistas “como parte integrante da criação, fazendo-os figurar entre a exuberante população do Universo” (GRANJA, apud MENDONÇA, 2007, p. 101), não era à toa que mesmo nos tímpanos das grandes catedrais românicas sua presença era constante:
Figura 4
Detalhe do tímpano da catedral de Vézelay, Espanha. Note-se que à direita de Cristo estão os representantes da raça dos cinocéfilos; e, à esquerda, os dos panótios, c. 1130
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Havia, no período românico, o emprego sistemático, nas igrejas e catedrais, de criaturas fantásticas e monstruosas, as quais se envolviam em entrelaçamentos tortuosos e mortais aos homens, a fim de persegui-los com suas bocarras abertas, exibindo suas garras afiadas, prontas a agarrá-los com ferocidade. Tais monstros representavam os poderes diabólicos que buscavam, de todas as formas, arregimentar as almas para si (fig. 5).
Figura 5
Capitel com homem e monstros, igreja de São Pedro, Chauvigny, séc. XII
Verifica-se, dessa forma, como as imagens, mais do que se restringirem aos poucos livros existentes no período medieval, espalharam-se principalmente por lugares onde poderiam ser lidas e relidas, imiscuindo-se com o sacro.
Além da arte escultórica, a arte literária do medievo também estará repleta de seres monstruosos com os quais os homens teriam de lutar, como é o caso do poema inglês Beowulf, ou de Tristão e Isolda, só para citar dois. Tal emprego, portanto, não é uma criação recente, mas possui uma tradição de séculos.
Rowling também empregará monstros em seu Harry Potter e reside aí o papel do professor em estabelecer relação entre o ontem e o hoje; entre o emprego do maravilhoso medieval e a criação contemporânea. Que se evidencie, entretanto, que tal comparação não deve ser feita para se menosprezar a obra hodierna, em detrimento da extemporânea afinal o escritor, após o rompimento mimético (BRANDÃO, 2011), tem toda a liberdade de fazer suas escolhas, afinal não está mais preso a paradigmas que lhe imputam o emprego de acordo com um mesmo denominador comum.
Isso é especialmente válido se tomarmos o exemplo do unicórnio que, nos bestiários, representa um animal tão puro que, para aqueles que pretendessem caçá-lo, teriam de arregimentar uma mulher pura e virgem para fazê-lo (fig. 5). Esse mesmo conceito ainda permeará os padrões iconológicos que chegarão ao séc. XVIII. Cesare Ripa (1987, p. 423), teórico e escritor do século XVI, ao descrever a alegoria da virgindade também emprega o animal fantástico:
Jovencita que acaria com sus manos a un gran Unicornio, por cuanto escriben algunos que el mencionado animal nunca se deja atrapar si no es por la mano de una virgen.
Figura 6
Unicórnio do Rochester Bestiary, cerca de 1230
Tal acepção, entretanto, não se verifica, ipsis litteris, na obra Harry Potter e a pedra filosofal:
Alguma coisa muito branca brilhava no chão. Eles se aproximaram aos poucos.
Era o unicórnio, sim, e estava morto. Harry nunca vira nada tão bonito nem tão triste. As pernas longas e finas estavam esticadas em ângulos estranhos onde ele caíra e sua crina espalhava-se nacarada sobre as folhas escuras. Harry dera um passo à frente, mas um som de algo que deslizava o fez congelar onde estava. Uma moita na orla da clareira estremeceu... Então, do meio das sombras saiu um vulto encapuzado que se arrastava de gatas pelo chão como uma fera à caça. Harry, Malfoy e Canino ficaram paralisados. O vulto encapuzado aproximou-se do unicórnio, abaixou a cabeça sobre ferimento no flanco do animal e começou a beber o seu sangue. (ROWLING, 2000, p. 220)
Evidentemente, se ainda estivéssemos sob a égide iconológica, tal cena não seria possível, pois quem se aproximou, feriu e bebeu o sangue do animal fantástico foi Quirrel/Voldemort, homem, por sinal, nada puro:
— Está vendo no que me transformei? — disse o rosto. — Apenas uma sombra vaporosa. Só tenho forma quando posso compartir o corpo de alguém... Mas sempre houve gente disposta a me deixar entrar no seu coração e na sua mente... O sangue do unicórnio me fortaleceu, nessas últimas semanas... Você viu o fiel Quirrell bebendo-o por mim na floresta... E uma vez que eu tenha o elixir da vida, poderei criar um corpo só meu... Agora... Por que você não me dá essa pedra no seu bolso? (ibidem, p. 250)
Duas outras criaturas merecem atenção: o cão Cérbero (Fofo, na obra em questão) e os Centauros ambos presentes na mitologia grega e que perpassam o maravilhoso medieval.
Figura 7
Hades e Cérbero, Museu de Arqueologia de Creta
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— Ah! É você, Ronan — exclamou Hagrid aliviado. — Como vai?
Ele se adiantou e apertou a mão do centauro. (ibidem, p. 217)
Fofo, assim como seu congênere grego, que guardava as portas do Hades (local para onde iriam os mortos), era um ser monstruoso. Rowling assim o apresenta:
Não estavam numa sala, conforme ele supusera. Achavam-se num corredor. O corredor proibido do terceiro andar. E agora sabiam por que era proibido.
Estavam encarando os olhos de um cachorro monstruoso, um cachorro que ocupava todo o espaço entre o teto e o piso. Tinha três cabeças. Três pares de olhos que giravam enlouquecidos. Três narizes, que franziam e estremeciam farejando-os. Três bocas babosas, a saliva escorrendo em cordões viscosos das presas amarelas.
Estava muito firme, os olhos a observá-los, e Harry sabia que a única razão por que ainda estavam vivos era que o seu repentino aparecimento apanhara o cachorro de surpresa, mas ele já estava se recuperando e depressa, não havia dúvida quanto ao significado daqueles rosnados de ensurdecer.
Harry tateou a procura da maçaneta. Entre Filch e a morte, ficava com o Filch.
Retrocederam. Harry bateu a porta e eles correram, quase voaram pelo corredor, Filch devia ter tido pressa para procurá-los em outro lugar porque não o viram em parte alguma, mas nem se importaram. A única coisa que queriam era abrir a maior distância possível entre eles e o monstro. Não pararam de correr até chegarem ao retrato da Mulher Gorda no sétimo andar. (ibidem, p. 141)
Sua função era proteger o local onde se encontrava a mítica Pedra Filosofal:
— Viram? — disse Hermione, quando Harry e Rony terminaram. — O cachorro deve estar guardando a Pedra Filosofal de Flamel! Aposto que ele pediu a Dumbledore que a guardasse em segurança, porque são amigos e ele sabia que alguém andava atrás dela, esse é o motivo por que Dumbledore quis transferir a pedra de Gringotes. (ibidem, p. 190)
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Figura 7
Hades e Cérbero, Museu de Arqueologia de Creta
Para encerrar a questão dos seres humanos fantásticos temos de falar daqueles que não possuíam nariz e viviam, segundo a obra de Hartmann Schedel (1493), Crônicas de Nuremberg, na Índia. Tais seres lembram, inclusive, a representação de Voldemort propiciada pelo cinema, não a do livro:
Harry poderia ter gritado, mas não conseguiu produzir nem um som. Onde deveria estar a parte de trás da cabeça de Quirrell, havia um rosto, o rosto mais horrível que Harry já vira. Era branco-giz com intensos olhos vermelhos e fendas no lugar das narinas, como uma cobra.
Figura 8
Exemplo dos seres que não têm nariz e vivem na direção do rio Ganges. Crônicas de Nuremberg, de Hartmann Schedel (1493), folium XII
· Como o próprio título da obra diz, o enredo vai girar em torno da pedra filosofal, um dos principais objetivos da alquimia medieval, pois mais do que a transmutação de metais em ouro, com ela seria possível obter-se o elixir da longa vida, tão pretendido pelo antagonista em Harry Potter.
Diz a lenda que Nicolau Flamel (1340/1418) havia conseguido produzir a pedra ao realizar várias experimentações alquímicas, fato também abordado por Rowling (2000):
O antigo estudo da alquimia preocupava-se com a produção da Pedra Filosofal, uma substancia lendária com poderes fantásticos. A pedra pode transformar qualquer metal em ouro puro. Produz também o Elixir da Vida, que torna quem o bebe imortal. Falou-se muito da Pedra Filosofal durante séculos, mas
a única Pedra que existe presentemente pertence ao Sr. Nicolau Flamel o famoso alquimista e amante da opera. O Sr. Flamel que comemorou o seu sexcentésimo sexagésimo quinto aniversário no ano passado, leva uma vida tranquila em Devon, com sua mulher, Perenelle [...]. (pp. 189-190)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas (Trad. Arlene Caetano). São Paulo, Paz e Terra, 1980.
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BUCCI, Eugênio. in Folha de S. Paulo, 28/04/2002
BYATT, Antonia S. “Harry Potter and the Childish Adult”, in The New York Times, New York, 2003.
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CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 7ª ed. São Paulo, Ática, 2000.
DALCIN, Andréia. Um olhar sobre o paradidático de matemática. Campinas: UNICAMP, 2002. (Dissertação de mestrado)
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas, Papirus, 2006.
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KRAUSS, Rolf. H. Photographie & Literatur. Zur photographischen Wahrnehmung in der deutschsprachigen Literatur des neunzehnten Jahrhunderts. Ostfildern, Hatje Cantz Verlag, 2000.
LANCIANI, Giulia. “O maravilhoso como critério de diferenciação entre sistemas culturais”, in Revista Brasileira de História, Vol. 11, São Paulo, 1991.
LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o cotidiano na Idade Média. Lisboa, Edições 70, 1985.
LIMA, Jorge de. “Ensaios”. In: Poesias completas – v. 4. Rio de Janeiro: José Aguilar/MEC, 1974.
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MARÇAL, Márcia Romero. “A tensão entre o fantástico e o maravilhoso”, in Fronteiraz, Vol. 3, São Paulo, PUC/SP, 2009.
MENDONÇA, Ana T. P. Por mares nunca dantes cartografados: a permanência... Rio de Janeiro, PUC, 2007 (Tese de doutoramento).
MUNAKATA, Kazumi. Produzindo livros didáticos e paradidáticos. São Paulo: PUC, 1997. (Tese de doutorado)
PAPE, Wilhelm. Altgriechisches Wörterbuch. Berlin, Directmedia, 2005.
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ROWLING, J. K. Harry Poter e a Pedra Filosofa (tradução de Lia Wyler). Rio de Janeiro, Rocco, 2000.
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TIBA, Içami. “Pais reclamam que filhos não fazem seus deveres, mas são os primeiros a exigir seus direitos” in Revista Viva São Paulo, 1º/11/2007.
[1] Sobre esse aspecto, entretanto, deve-se salientar que não basta apenas gastar fortunas para se enviarem livros às escolas (quando o fazem!), se não se oferecem suportes mínimos e instalações apropriadas que garantam ao corpo discente e docente seu acesso.
[2] Evidentemente que aqui não se pretende mostrar todo o trabalho mercadológico que tal afirmação implica, principalmente as políticas de marketing das editoras e a busca para complementar sua ociosidade durante o período em que os livros didáticos não são produzidos. (Cf.: MUNAZAKA, 1997)
[3] Nos herbanários.
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